Ação da PM no Carandiru começa a
ser julgada em SP após 20 anos e com crimes prescritos. A rebelião teve início
com uma briga de presos no Pavilhão 9 da Casa de Detenção em 2 de outubro de
1992. Muitos detentos não perceberam o início da confusão, pois um campeonato interno
de futebol estava sendo realizado.
Janaina Garcia – do UOL
A ação da polícia resultou no massacre de 111 presos e só agora terá um julgamento |
A Justiça criminal começa a
julgar nesta segunda-feira (8), em São Paulo, o assassinato de 111 presos do
extinto complexo penitenciário do Carandiru, zona norte da capital paulista, no
dia 2 de outubro de 1992. O episódio ficou marcado como o mais trágico na
história do sistema carcerário do país e tem, ao todo, 79 policiais militares
no banco dos réus --alguns deles, acusados de crimes de lesão corporal que já
prescreveram.
O júri será realizado no Fórum
Criminal da Barra Funda (zona oeste de SP) e compreende uma primeira etapa de
julgamento do caso. Nela, serão avaliados pelos sete jurados e pelo juiz 26
policiais militares acusados pelas mortes de 15 presos que estavam no segundo
pavimento do pavilhão 9 da penitenciária, no qual ocorreu uma rebelião entre
grupos de detentos rivais que seria contida pela Polícia Militar. A confirmação
das mortes após a ação das forças do Estado, à época, foi feita por ele próprio
apenas no final da fim do dia seguinte à
rebelião: 3 de outubro de 1992, um domingo de eleições municipais.
Os condenados após a rebelião |
Em entrevista ao UOL, o juiz
designado para o caso, José Augusto Nardy Marzagão, do Fórum de Santana (zona
norte), afirmou que adotou a cisão do julgamento em quatro etapas tendo em
vista que, segundo a acusação, grupos distintos da Polícia Militar foram
responsáveis pela morte de presos em diferentes pavimentos do pavilhão 9. "Vamos
respeitar a ordem colocada pela acusação, delineando as condutas dos réus, até
para não confundir os jurados", disse o magistrado. Marzagão estima que
até o final do ano todas as 111 mortes tenham sido julgadas.
Após o júri dos 26 primeiros réus
(seriam 28, mas dois já morreram), o juiz marcará o dos 28 PMs acusados pela
morte de 73 presos que estavam no terceiro pavimento –a maior parte –e que
teriam sido mortos por oficiais da Rota. A previsão é que essa primeira etapa
dure duas semanas. Ela seria realizada em 28 de janeiro, mas foi adiada a
pedido da defesa e do Ministério Público para que a perícia das armas e das
balas retiradas dos corpos fosse refeita.
Perícia prejudicada
No começo do mês passado, o
Instituto de Criminalística enviou ofício ao Judiciário informando que nova
perícia seria inviável por razões técnicas. De 28 projéteis para laudo, por
exemplo, apenas três, segundo o IC, estão em condições de análise em função das
mais de duas décadas decorridas. Dos 350 revólveres, 250 estão sem condições,
e, no restante, ela não seria conclusiva. Para o Ministério Público, no
entanto, a impossibilidade técnica de se individualizar qual policial matou
qual preso não deve dificultar os trabalhos da acusação.
"A imputação feita aos
acusados nunca foi a de conduta individualizada, nem precisa, quando se fala em
uma situação de concurso de pessoas para a prática de crime. O confronto
balístico nunca foi imprescindível, nessa linha", disse um dos promotores
do caso, Márcio Friggi.
"O importante é que não se
trata de um julgamento da PM do Estado de São Paulo; não é a instituição, que
sempre foi nossa parceira, sentada no banco dos réus: falamos de policiais e
ex-policiais que violaram a lei, e, por isso, estão sendo julgados",
completou o promotor titular, Fernando Pereira da Silva. Na avaliação dos dois
jovens promotores do caso –Friggi tem 34 anos, e Silva, 33 --, o maior
empecilho da acusação não será no campo das provas, mas no ideológico.
"Muita gente na sociedade
ainda entende que bandido bom é bandido morto. De nada adianta vai adiantar
todo um conjunto probatório se os jurados julgarem com base nessa linha",
disse Friggi, nessa sexta, na entrevista coletiva em que o MP falou sobre os preparativos
para o julgamento.
Acusações, mortes e prescrições
ao longo das décadas
Ao todo, o MP havia acusado pelas
111 mortes 84 policiais militares, dos quais cinco já morreram --o mais
célebre, o comandante da operação, coronel Ubiratan Rodrigues, assassinado em
São Paulo no ano de 2006. Como, além dos mortos, a ação da PM deixou ainda 87
presos feridos, parte dos acusados pelos homicídios respondia também por crimes
de lesão corporal –dos quais 86 já prescreveram, em caso de lesão leve, e uma
ainda é vigente, por ser lesão grave.
Sobre os 26 PMs que vão a júri
nessa primeira etapa, porém, pesam apenas as acusações de homicídio qualificado,
com penas que podem variar de 12 a 30 anos de prisão. Como são réus soltos, há
a possibilidade legal de que, em caso de condenação, recorram em liberdade. Do
grupo, oito ainda estão na ativa, alguns com promoções; o restante é
ex-policial ou foi para a reserva.
Defesa
Ao contrário dos promotores, a
advogada de todos os réus, Ieda Ribeiro de Souza, acredita que a falta de
provas que individualizem a conduta dos réus prejudica a acusação. "Esperamos
que os jurados analisem provas. Porque é muito fácil atribuir esse caso à PM,
mas não tem nada que diga que o policial X matou a vítima Y. Precisamos de
isenção de ânimo dos jurados", declarou. A advogada sugeriu que nem todos
os 26 deverão ser ouvidos pela defesa, possibilidade que a lei coloca, "a
fim de abreviar o sofrimento do jurado".
Padre Valdir Silveira fala
durante entrevista coletiva em São Paulo no último dia 28 que reuniu membros da
Pastoral Carcerária e um sobrevivente. "O massacre do Carandiru é símbolo
da convergência de duas políticas do Estado que ainda vigoram: a política de
extermínio e de encarceramento em massa da população mais pobre e
periférica", diz Rodolfo Valente, da Pastoral Carcerária.
Justiça Militar não puniu; TJ
"segurou" processo 10 anos até marcar júri
O caso passou pela Justiça
Militar, onde nenhum dos policiais envolvidos na ação teve sanções
disciplinares ou administrativas. Em 1997, o STJ (Superior Tribunal de Justiça)
decidiu manter o processo na Justiça comum, mesmo ano em que o MP pediu à
Justiça que os réus fossem levados a júri popular. Após uma série de recursos,
em 2000, o julgamento de uma dessas medidas confirmou que os réus iriam a júri.
Só no Tribunal de Justiça de São
Paulo, o processo ficou durante pouco mais de dez anos até o júri popular
finalmente ser marcado, em 2011. "Desde que esse caso voltou ao fórum, em
dezembro de 2011, não medimos esforços para que ele fosse julgado ainda este
ano. O júri seria em janeiro, mas tanto o MP quanto a advogada dos réus pediram
nova perícia do confronto balístico, o que só agora, em março, o IC respondeu
que não seria tecnicamente viável", afirmou o magistrado.
Números da operação da PM na
rebelião
Ao todo, 330 PMs agiram para
conter uma rebelião iniciada por detentos do pavilhão 9 do complexo, no qual,
naquele dia, havia 2.070 internos. Em toda a casa de detenção, eram pouco mais
de 7.000 internos. Segundo os autos, a rebelião teve início às 14h20 do dia 2
de outubro e terminou na madrugada do dia 3, às 4h15. Além do efetivo, a PM
ainda usou 25 cavalos e 13 cães na operação, da qual, além dos 111 presos
mortos, resultaram também 87 presos e 22 policiais militares feridos.