Milton Hatoum: Sem oportunidades de educação para todos não há meritocracia
(Foto:Camila Fontana/Editora Globo)
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Em entrevista feita por Camila
Guimarães para a revista ÉPOCA, Milton Hatoum afirma que Falta formação
educacional consistente. Para o escritor amazonense, autor de 'Dois irmãos', a
baixa qualidade do ensino público não forma alunos pensadores, capazes de
escrever.
ÉPOCA – Por que tanta gente
escreve mal?
Milton Hatoum - Não há mistério.
Falta uma formação educacional consistente. Como um jovem estudante brasileiro
pode elaborar um pensamento se ele mal consegue ler e escrever? Como expressar
esse pensamento com a fala e a escrita?
Quando penso na relevância da leitura e no seu papel central na formação
da cidadania, penso também na qualidade da escola pública.
ÉPOCA – Mas é só a escola? A
família não tem influência?
Hatoum- Ambos têm papel
fundamental na formação adequada dos jovens como escritores competentes. Mas é
preciso ressaltar que a pobreza e a miséria dificultam e até inviabilizam uma
razoável formação educacional. É um círculo vicioso: os professores da escola
pública são mal remunerados, as condições de ensino são precárias e a posição
social dos pais dos alunos é desfavorável, quando não dramática.
ÉPOCA – Como romper esse círculo
vicioso?
Hatoum - A meu ver, os
governadores e os 5.570 prefeitos (dos municípios) são diretamente responsáveis
pela qualidade da educação. Será que esses políticos (ou a maioria deles)
pensam na formação educacional das crianças e jovens brasileiros? Estão
sensibilizados com essa questão? Tenho dúvidas. Por outro lado, a classe média
paga impostos e paga a mensalidade escolar de seus filhos, sem contar o plano
de saúde. Por isso a nossa democracia é manca, é apenas uma caricatura de
democracia. Só se pode falar de mérito quando há oportunidades iguais, daí a
importância da escola pública de qualidade.
ÉPOCA – Escrever bem é uma habilidade
valorizada socialmente no Brasil? Pela sua experiência, a sociedade francesa,
por exemplo, prestigia mais a boa escrita?
Hatoum - A literatura é uma
espécie de culto na França. Jorge Luis Borges menciona “a quase infinita
literatura francesa”. Um romance que ganha o prêmio Goncourt conquista, na pior
das hipóteses, cem mil leitores. Ler e escrever bem são tarefas da escola
pública francesa, que ainda é razoavelmente consistente. Isso faz parte de uma
longa tradição, foi uma conquista da Revolução Francesa, que privilegiou o
ensino laico e universal. A mesma coisa ocorre na Alemanha, na Inglaterra e em
outros países europeus. Nesses países, e a Inglaterra é um exemplo notável, o
estudo da História e das Humanidades é levado a sério.
ÉPOCA - E no Brasil?
Hatoum - A interrupção brusca e
brutal do processo democrático teve repercussões graves na qualidade do ensino
público e, consequentemente, na sociedade brasileira. Todos sabem como tem sido
penoso reparar essa falha histórica. Talvez minha geração seja um elo perdido
entre os anseios e promessas de uma educação pública de qualidade e o descaso a
essa política educacional durante o regime militar. Penso que a literatura pode
aguçar a sensibilidade dos leitores e, não raramente, dotá-los de uma
consciência crítica sobre a nossa sociedade e o tempo em que vivemos. A
literatura, sem ser panfletária ou rasa, pode muito bem contribuir para a
formação da cidadania.