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Geraldo Moreira Prado: O homem dos 110 mil livros!

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No ano de 1920, o escritor fluminense Lima Barreto lança um livro de contos chamado Histórias e Sonhos. Dentre as diversas narrativas, uma nos interessa para este artigo: A biblioteca. Nela, Fausto Carregal, o protagonista, farmacêutico de formação, recebe de herança uma biblioteca, símbolo da fraterna ligação de seu pai com o conhecimento. Foi a única coisa que ele carregou ao longo de sua vida e que sobreviveu como legado da família. Tudo o mais desapareceu, vendido ou doado. Já velho, Fausto se deparava com o problema da preservação daquele acervo. Os filhos não estavam nem um pouco preocupados com aquele tesouro e ele ainda mantinha tudo aquilo como identidade de uma época em que houve prestígio social para a família, embora nunca tivesse lido um só livro dali. Termina a narrativa Fausto Carregal tocando fogo em todos os livros, formando fogueiras diversas e organizadas. O desfecho da narrativa rima com o terror. Quem sabe um pouco sobre Lima Barreto deve ter percebido a angústia do autor ao escrever as linhas finais desta história. Por ironia do destino, Lima Barreto tinha uma pequena biblioteca em seu quarto. Era chamada de “Limana”, com algumas centenas de livros. Foi doada pelos irmãos a quem bancou os sepultamentos de Lima e do pai do escritor. Também a “Limana” teve um fim trágico, acomodada num local sem as condições necessárias para a preservação dos seus livros.

O Brasil é uma nação predadora de bibliotecas. Estudos indicam que, de 2016 para cá, mais de 800 bibliotecas foram fechadas ou destruídas. Esta relação de amor e ódio ao conhecimento não é de agora e não acabará tão cedo. Por outro lado, quando menos se espera, uma flor brota num lugar inesperado como prática da oração de São Francisco, mesmo sem a devida retribuição. Poderíamos chamar de desafio à lógica, fato para o incrédulo, murro em ponta de faca ou coisa de doido. Longe, muito longe de representar uma normalidade.

O povoado de São José do Paiaiá fica no município de Nova Soure, onze quilômetros depois da sede, margem direita da rodovia BR-110, seguindo para Salvador. Do povoado para a BR são apenas dois quilômetros, e asfaltados. Não se tem notícia de uma população em torno dos 700 viventes, com uma parte analfabeta ou semianalfabeta, vivendo da agricultura, numa região quase áspera no clima, que mantenha uma biblioteca com um acervo invejável de mais de 110 mil livros, em qualquer outro lugar do planeta. A Biblioteca do Paiaiá é uma ilha cercada de impossibilidade por todos os lados, sobrevivendo por determinação do seu idealizador e fundador, o professor Geraldo Moreira Prado, hoje com 82 anos e aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O nome oficial da biblioteca é Maria das Neves Prado, mãe do fundador e professora. Além dos 110 mil livros, entre os quais mais de 6 mil de raros e especiais, há ainda 1.600 dvds, 133 fitas de vídeo, 15 mil periódicos e 5 mil gibis.

O professor Geraldo Moreira Prado nasceu em Paiaiá e, como tantos, seguiu para o sul a busca de uma vida melhor. Seu apreço pelos livros começou na escola, ainda na terra natal. Lembra bem que ganhou um livro da mãe de Ivete Sangalo, que era também professora. Começou bem cedo a juntá-los e, mesmo com dificuldades, todo dinheiro que sobrava era para comprar livros. Comeu o pão que o diabo amassou para se aprumar na vida. Morou de favor, dormiu em porões. Nada o fez se afastar dos livros. Nem mesmo as mulheres que amou tiveram forças para tirá-lo da determinação de investir em sua biblioteca. Por sorte, casou-se com uma dinamarquesa também amante dos livros. Embora separados, até hoje são amigos. Geraldo Prado tem livros que são como lembranças dos lugares por onde andou. A memória do lugar vem do livro que comprou.

Ao todo, o fundador da Biblioteca do Paiaiá colecionou mais de 90 mil livros e quase todos foram doados à biblioteca do povoado. Ficaram poucas centenas no Rio de Janeiro, onde ainda mora, dividindo atenção com Paiaiá. Hoje, a biblioteca é uma associação. A medida visa tentar encontrar recursos para a manutenção do acervo. As contas de água, luz, internet, manutenção dos computadores, higienização dos livros e pagamento de funcionários são bancadas pelo seu criador. Uma vez ou outra surgem patrocínios temporários que aliviam o bolso de Geraldo, mas não resolvem o problema em definitivo. Há ainda muitos colaboradores, mas o que a Biblioteca do Paiaiá precisa é de recursos permanentes para se manter viva. Ela não atende apenas ao povoado. Hoje, com a quase já consolidada Festa Literária Internacional – a FliPaiaiá, em sua terceira edição, a Biblioteca do Paiaiá atende a um considerável público de toda região, principalmente estudantes universitários. Sobre a 3ª FliPaiaiá, Geraldo Prado credita o feito a vários amigos, principalmente ao escritor Luiz Eudes, autor do livro de contos Cangalha do Vento.

Em tempos tão sombrios vividos pela cultura do país, não se sabe até quando o conhecimento e a arte terão paciência para continuar com o chapéu no largo da praça à espera das moedas da sobrevivência. O mais simples parece tão distante. Uma simples Lei do município de Nova Soure, orçando permanentemente as despesas corriqueiras já seria de grande ajuda. Não se sabe até que dia o ex-faxineiro e ex-porteiro, hoje historiador e professor aposentado da UFRJ aguentará bancando a manutenção da biblioteca. Ele fará aniversário no dia 28 de julho, em meio à realização da FliPaiaiá. Seu presente desejado é apenas poder estar com os amigos e abraçá-los, ao lado dos seus livros, substitutos dos filhos que não teve. Diferentemente de Fausto Carregal, Geraldo Moreira Prado não pensa em chutar o pau da barraca e luta para não ver a sua enorme Biblioteca do Paiaiá, que ostenta o título de maior biblioteca comunitária em área rural do mundo, ter o mesmo fim da “Limana” de Lima Barreto.