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Neópolis - Cidades do Velho Chico - 31

Round 6 e o estado mínimo

Os atores OhYoung-Soo e Jung-jae Lee da popular série da Netflix Round 6. (Foto: IstoÉ)

A série da Coreia do Sul Round 6 está em franco sucesso na Netflix e há muitas razões para isso. Além de questionar a nossa relação com o dinheiro, inclusive a capacidade de nos transformar em verdadeiros selvagens quando o vil metal é uma possibilidade concreta, a série tem passagens de despertar questionamentos sobre nossa forma de viver e de encarar o mundo. Numa cena entre os atores Jung-jae Lee, o 456, e Oh Young-Soo, o 001, de forma acreditamos que proposital, o roteirista coloca um questionamento sorrateiro sobre a função do estado no capitalismo moderno. 

O 001 está acamado à espera da morte e recebe a visita do 456. O protagonista pergunta ao doente o que o levou a fazer aquele jogo, ceifando a vida de várias pessoas. Visivelmente irritado, e desejando matar o velho que tanto ajudou, e o julgava até morto, foi desafiado mais uma vez para um jogo. O desafio era um homem caído numa calçada, numa noite fria em Seul. Eram exatamente 23hrs35mins. O velho moribundo disse que caso aparecesse alguém para ajudar a pessoa caída na calçada até a meia noite, o 456 venceria a aposta. Do contrário, o ancião venceria. Nos vinte e cinco minutos de diálogo entre os dois, o velho tenta buscar formas de convencer o protagonista das razões que justificam toda aquela loucura. Faltando alguns segundos para as 24 horas, uma viatura de polícia para na calçada e socorre o necessitado. O 456 vai então dizer ao 001 que ele perdeu a aposta, mas o velho havia dado o último suspiro.

A cena é reveladora de muita coisa, mas poucos param para pensar que o socorro foi dado pelo estado. No mundo dito moderno, as pessoas não têm tempo para socorrer uns aos outros. A função passa a ser do estado. É ele que contrata seres humanos para socorrer seres humanos. Como querem o chamado estado mínimo? Sabemos que em vários lugares há as chamadas Organizações Não Governamentais - Ongs, que fazem o papel do estado quando este se ausenta ou é inoperante. Médicos Sem Fronteira, Pastoral da Criança, Santa Casa de Misericórdia, Obras Sociais Irmã Dulce, Unicef, dentre tantas, procuram trabalhar para cobrir um imenso espaço de socorro ao ser humano, que deveria ser obrigação de um estado no tamanho adequado.

É claro que na Coreia do Sul a coisa está infinitamente melhor que no Brasil. Como haverá ainda pelo menos mais uma temporada, os telespectadores saberão como é possível tanta carnificina ocorrer debaixo das barbas do estado, sem a sua participação, permissão ou omissão. Enquanto o drama se enreda, já dá para percebermos, somente na cena registrada, o quanto cruel é a mentalidade dos que imaginam ou pregam o estado diminuto, à mercê do mercado. Um absurdo! Até porque ainda temos muitos pobres, mesmo na Coreia do Sul. Se queremos continuar com o capitalismo como sistema, é preciso que o estado funcione como regulador das condições mínimas de sobrevivência. Não é proibido ficar rico, mas esta riqueza tem que financiar o bem-estar daqueles que não conseguiram, por várias razões, uma posição de independência financeira.

No nosso meio, a coisa está longe dessa discussão. Aqui, o estado tem dono. Compra-se um mandato com financiamento de empresários, ciganos milionários, famílias poderosas ou conglomerados financeiros. O voto é do povo, mas tem preço. Vai de um saco de cimento a um emprego na prefeitura, no estado ou nas repartições federais. Claro que nem sempre é assim. Há uma minoria sensata, que vota pensando no progresso do país, mas o predomínio é dos grandes negociadores e exploradores da miséria. Em nome da manutenção dos poderosos no poder, médico receita remédio ineficiente para tal doença, professor aprova aluno analfabeto, cartório dá documento falso e juiz dá sentença beneficiando os apadrinhados. O estado aqui é dos poderosos, até o dia que desejarmos. Felizmente, temos uma Constituição que nos permite mudar tudo na hora do voto, mas quando?