A dimensão das manifestações
populares que tomaram o País neste domingo não chega a ser uma surpresa, mesmo
talvez para aqueles que acompanham à distância a evolução do cenário. Antes que
o sentimento de indignação se resolvesse em uma mobilização que beira a casa de
um milhão de pessoas Brasil afora, já havia sinais claros de que a insatisfação
se espraiava pela sociedade.
Se partirmos do que é mais
recente e, portanto, está mais claro na memória de todos, disseminou-se entre
nós a velha sensação de que eleição é uma coisa e a vida real, outra, às vezes
completamente diferentes. Deste modo, um governo que minorou a escala da crise
que se aproximava e prometeu tratá-la fora do receituário conservador, eleito,
apresenta a primeira conta dos ajustes, sabidamente necessários muito antes das
definições eleitorais, a ninguém mais que a gente simples, trabalhadores e
pensionistas em especial.
O que anima a indignação, em
grande parte, é justamente esta contradição e, por trás dela, o faro apurado da
sabedoria popular. O governo Dilma, de há muito, já havia se afastado das
pautas mais progressistas, refém que se colocou de seu imobilismo, de uma certa
preguiça de fazer política em seu sentido nobre e, portanto, preferiu consumir
seu capital político, no aguardo de que a crise fosse confortavelmente
administrável.
O arrefecimento do projeto de
mudança animado pelas demandas populares, que se iniciou em 2003, foi
amplamente denunciado pelo Governador Eduardo Campos, quando de sua ruptura com
o governo Dilma e continuou a sê-lo, nos debates eleitorais. Era evidente,
também, àquela altura, que se acumulavam pressões inflacionárias de grande
monta, por conta da contenção dos preços administrados, especialmente tarifas
de energia e combustíveis. O ambiente de negócios piorava significativamente,
tanto por força da conjuntura econômica, quanto pelas reiteradas demonstrações
que o governo deu, de que preferia não ver o óbvio e reagir prontamente às
ameaças que se configuravam.
À indignação pela dicotomia
governista pré e pós eleições soma-se, contudo, uma inconformidade de larga
duração: a naturalização do desmando e do desgoverno, que permitiram a
emergência e crescimento de um fenômeno de enorme significado ético, como é o
da Petrobrás. É esse sentimento de ser recorrentemente passado para trás, de
ser uma espécie de primo bastardo daqueles que têm o poder, que
majoritariamente leva o povo às ruas. Essa dimensão ética que se associa à
crise é, contudo, expressão de uma enorme ausência do governo da atividade
política, a qual demonstra a escala real de suas fragilidades.
A "Presidente Gerente"
é a síntese personificada da pouca disposição para o exercício político, que só
se faz por meio do diálogo amplo; diálogo com os iguais e com os que são
diferentes; situação e oposição, de tal forma a que se criem compromissos em
torno de alvos coletivos, sociais, que melhorem concretamente a vida das
pessoas. O governo tem preferido administrar as limitações do status quo, mas a
população quer melhorar de vida, deseja que as malversações sejam ampla e
duramente punidas, porque não aceita que a política seja o lugar das transações
pela permanência indefinida no poder.
O povo, portanto, manda um recado
inequívoco ao governo, com as manifestações deste domingo. Deseja em primeiro
lugar que o governo se coloque à altura do presente momento. Anseia, mas ainda,
por alianças que não impliquem as práticas de sempre, a contabilidade dos votos
nas casas parlamentares, mas uma composição governista baseada em princípios e
que priorize não aqueles que já têm muitos, mas o que tendo pouco, se veem
ainda mais ameaçados no momento de crise. A população quer, por assim dizer,
aquilo que Eduardo Campos representou como possibilidade política.
Isso só se fará possível,
contudo, se o governo ampliar de forma significativa sua disponibilidade para
conduzir um projeto político, que não se resuma ao gerenciamento das estruturas
do Estado e que não implique a rendição às velhas práticas patrimonialistas e
clientelistas, que campeiam também no terreno da esquerda, sempre que se
apresenta a sedução da perpetuação no poder, em nome de uma monopolização falaciosa
da representação popular.
Esse talvez seja o grande recado
do dia 15/03: o governo que se imagina o mais autêntico representante de uma
plataforma política popular deve voltar a caminhar em direção ao povo, que já o
vê a esta altura como um rei nu. Para que esse rei possa reencontrar a
dignidade de sua condição, é preciso despertar do "sonho" de uma
prática autárquica de poder, para a realidade da necessidade de operar uma
mudança radical em seu modus operandi, que envelheceu com a velocidade da crise
ética que o arrasta.
Os parceiros dessa mudança de
padrão de atuação política não se encontram, contudo, nos lugares em que o
governo tem buscado seus aliados. É preciso que o governo se oriente pela
atenção às demandas e inquietações populares, em lugar de vender o que não pode
entregar, em sua atual composição de forças.
É disso que se trata ao fim,
neste domingo, do ponto de vista político: que o governo seja coerente e que
faça o que é necessário, para não imputar ao povo a conta de sua baixa
disposição, até aqui, para ver os desafios da crise em sua verdadeira escala.
Essa mesma demanda qualifica o recado: não se trata, obviamente, de
impeachment, que colocaria a todos justamente na direção do que se pretende
evitar. Menos ainda de um retorno do regime militar, visto que na ausência de
democracia prosperam as práticas que o povo, com sua sabedoria, quer ver pelas
costas.
Brasília-DF, 15 de março de 2015.
Carlos Siqueira
Presidente Nacional do PSB