Publicado originalmente na Folha
de São Paulo
Luiz Eduardo Soares (foto: luizeduardosoares.com) |
Tenho amigos e interlocutores no
PT. Os amigos respeitam e calam. Os outros me pedem calma. Acham que estou
reagindo com o fígado, por mágoa. Digo a eles que não é mágoa, é indignação.
Balançam a cabeça, condescendentes. Ainda têm esperança em minha conversão.
Cada voto vale a paciência dos militantes.
Sei que essa indulgência com
minha rebeldia tem prazo de validade. Assim que desistirem, empurram-me ao
inferno sem piedade.
Quando digo que Marina Silva foi
caluniada da forma mais torpe pelo PT, atribuem a selvageria ao marqueteiro. Se
reajo cobrando responsabilidades, transferem-na à natureza aguerrida da
eleição. Quando afirmo que o governo federal endossou a repressão criminosa aos
protestos, vacilam, mas apontam para o futuro: o segundo mandato será melhor.
Se questiono o otimismo,
lembrando a proposta da candidata de que as Forças Armadas participarão dos
comandos locais da segurança, hesitam, mas justificam: isso é retórica
eleitoral, o que vale é a prática. Quando digo que a prática tem sido
lamentável, voltam a acenar com um futuro diferente.
Ao afirmar que a desigualdade
parou de diminuir, respondem com a crise internacional e a estabilização do
emprego. Contestam e dizem que estou hipnotizado pelo discurso terrorista da
mídia se digo que o pleno emprego cederá ante a estagflação. Se acuso a
regressão na área ambiental, mudam de assunto.
Se aponto a cumplicidade com
ameaças a indígenas e seus territórios, atribuem os recuos à garantia da governabilidade.
Quando falo da manutenção dos velhos métodos políticos, dizem que a presidente
tentou estimular uma reforma política, mas que não dependia dela e, afinal,
esse é o custo do poder.
Quando pergunto para que o poder
se nada avança, respondem com o futuro de conquistas sociais extraordinárias.
Se falo da corrupção na Petrobras, dizem que herdaram a peste dos governos
anteriores. Se lembro que já são 12 anos de PT, atribuem o escândalo a
maquinações para desmoralizar a empresa e fazê-la presa fácil para a
privatização.
Quando cito outras instâncias de
poder aparelhadas e sublinho o dano causado aos movimentos sociais pela
cooptação, respondem com hostilidade, afirmando que meu olhar está viciado pelo
ingênuo encantamento com as manifestações de 2013.
Quando, finalmente, afirmo que o
governo Dilma foi medíocre, mostram-se dispostos a aceitar, mas questionam qual
poderia ser a alternativa. Digo-lhes, então, para seu desgosto: haveria algo
mais conservador e medíocre do que defender a mediocridade conservadora?
Resta-lhes a bala de prata: o
medo. A oposição arruinará os programas sociais e aprofundará as desigualdades.
Pondero: e se o compromisso de manter os programas for para valer? Duvidam: a
política econômica neoliberal os destruirá.
Argumento, lembrando que Lula
governou com o tripé neoliberal e com Henrique Meirelles no Banco Central. E,
assim, arrumou a casa para investir nos programas sociais. Mas Lula é Lula,
proclamam. Minha capacidade de acompanhar o raciocínio de meus interlocutores
esgota-se nesse ponto, coincidindo com o limite da tolerância que eles se
esforçam por estender.
Percebendo que o voto está
perdido, confessam o diagnóstico letal: você não passa de um neoliberal.
LUIZ EDUARDO SOARES, 60,
cientista político e antropólogo. É autor de "Elite da Tropa"
(Objetiva) e de "Tudo ou Nada" (Nova Fronteira). Foi secretário
nacional de Segurança Pública (governo Lula).