Já não é mais novidade que, com
as inúmeras vitórias conseguidas nos últimos anos, fruto do trabalho de
promotores dedicados, há uma elite jurídica querendo colocar o ministério
público na gaveta. A prática não é nova. Tudo que neste país funciona de forma
republicana sofre podagem de inúmeras formas. Que o diga a imprensa com o
propalado marco regulatório. Mas aqui vou premiar os meus leitores com quatro
postagens do jornalista Luís Augusto Gomes, do seu blog POR ESCRITO, que trata
do tema. Está integral porque perfeito. A reprodução aqui é minha assinatura de
concordância. Vejam:
Luís Augusto Gomes |
O Ministério Público sob o risco
do Justiçamento
O juiz Fernando da Costa Tourinho
Neto tem em seu currículo a tentativa, rejeitada por seus pares, de decretar a
ilegalidade dos grampos telefônicos que permitiram à Polícia Federal espionar o
contraventor Carlinhos Cachoeira, a quem deu outras decisões favoráveis,
certamente como magistrado que profere livremente, e com consciência tranquila,
suas sentenças.
A imprensa relata sua posição
contra a proposta emenda constitucional 37, que restringe a ação do Ministério
Público. “Sou contra o poder de investigação do Ministério Público, porque
normalmente o procurador ou promotor se envolve na investigação”, disse ele, a
um só tempo recusando apoio especializado para elucidação de crimes e
levantando ilações de natureza comportamental sobre eminentes colegas de
serviço público.
Sua excelência investe contra a
ministra Eliana Calmon, que teria solicitado interferência de políticos
poderosos para chegar ao tribunal. Imaginamos que o Dr. Tourinho tenha chegado
ao cargo por exclusivo mérito. Talvez não haja sido esse o caminho da Drª
Calmon, num país de histórica cultura de apadrinhamento, mas, para a realidade
dos fatos, vale o que cada um faz do seu mandato.
Ministro Joaquim Barbosa |
Joaquim Barbosa: Rebeldia contra
o “status quo” e impunidade
A ideia do comentário acima
estava delineada quando uma declaração de outra alta autoridade judiciária, o
presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, veio a público sobre o
assunto, permitindo que as considerações possam estender-se um pouco.
Com argúcia, Barbosa formulou a
diferença fundamental entre juízes e promotores, que pode não ter sido aferida,
mas é percebida na pele pela sociedade: a mentalidade dos juízes seria “mais
conservadora, pró status quo, pró impunidade”, enquanto os promotores são
“rebeldes” em relação a esses conceitos.
O presidente do STF estranha que
isso ocorra com carreiras “muito próximas”, de origem comum, ambas de concurso
público, cujos membros têm “salários semelhantes”. No entanto, conforme sua
observação, quando os bacharéis em direito se tornam juízes ou promotores, “as
mentalidades são absolutamente díspares”.
Juiz Fernando da Costa Tourinho Neto |
Categoria seria limitada e
avalista de terceiros
“A polícia investiga, o MP acusa
e o juiz julga”, afirmou o Dr. Tourinho em sua peroração pré-compulsória,
vinculando seu conceito ao “estado democrático de direito” e propugnando por um
isolamento de ações que a própria fala contradita.
Se o MP simplesmente “acusa”, sem
a capacidade de perscrutar os fatos, restar-lhe-á avalizar ou não o trabalho da
polícia, e se o inquérito chegar às mãos do magistrado, este, sim, saberá,
soberanamente, o que é certo fazer em nome de todos.
O juiz Tourinho estabeleceu uma
divisão clara entre sua categoria e a dos procuradores do Ministério Público –
e está absolutamente certo.
Vocação é, a um só tempo,
propensão, escolha profissional, predestinação. No campo teológico, um
chamamento espiritual para o exercício do sacerdócio.
No caso dos juízes, um sacerdócio
mais sagrado ainda, porque feito para proteger os direitos elementares e
secundários da sociedade e dos indivíduos.
Mas Ruy Barbosa, cujos 90 anos de morte transcorreram ontem,
escreveu, em 1899, que “não há tribunais que bastem para abrigar o direito
quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados”.
Se, com sua inequívoca autoridade de jurista, político,
ministro, naquela época já se pronunciava assim, calcule-se a quanto desceram
as cortes brasileiras depois de atravessarem todo o século XX.
É uma história da tradição oral a débâcle da Justiça
brasileira, que, na prática, nunca se fez, se não plenamente, ao menos em
proporções capazes de amainar o desespero da maioria dos que procuram por ela.
Duas carreiras num confronto de credibilidade
O Ministério Público nasceu, em grande parte, no rastro
desse fracasso. O constituinte de 1988 entendeu que deveria legar à nação uma
instituição independente e autônoma, destinada a fiscalizar o cumprimento da
lei, zelar pelos interesses coletivos e os dos mais vulneráveis, enfim,
proteger o patrimônio público, ambiental, social e econômico do país.
A categoria emergente, pela sua natureza, atraiu pessoas
interessadas em assumir a defesa da correção e das boas causas no Brasil, e
todos nós vimos plêiades de jovens advogados do povo mostrando, nos diversos
Estados, seu talento e compromisso com o futuro da pátria.
Pode-se dizer que, de saída, suas carreiras foram
construídas rigorosamente pelos padrões de mérito, enquanto a magistratura
padece do mal original da nomeação, lá nos embriões brasileiros, em sistema que
produziu a hereditariedade – que
curiosamente se mantém nos dias de hoje, na vigência do concurso público – e
alcançou até indícios de mercado paralelo de sentenças.
Mais que a elementar defesa das prerrogativas de cada
segmento, a tendência notada na reação de correntes do Judiciário ao exercício
pleno de suas funções pelo MP representa o temor da confrontação de
credibilidade pelos os suplicantes da verdade, uma ameaça de perda grave de
espaço em cenário que, se não passar a PEC 137, continuará democrático.