Nos últimos dois anos, número de
equipes descredenciadas no país quase dobrou
MARCELLE RIBEIRO – de O GLOBO
Cerca de 20 anos após a criação
do Programa Saúde da Família, ainda há entraves para a ampliação da população
atendida no país e dificuldades para atrair médicos, segundo associações de
saúde. Casos de irregularidades envolvendo a gestão dos profissionais de saúde
que atuam no programa não são raros, e a média de equipes descredenciadas por
mês pelo Ministério da Saúde tem crescido.
Em 2010, o ministério
descredenciou em média 342 equipes por mês no país. Em 2011, foram 444 e em
2012, 632. Em um modelo em que o médico deveria conhecer melhor as famílias
atendidas, a rotatividade desses profissionais é maior do que o adequado e a
população acaba prejudicada, dizem associações.
O ministério, que repassa
recursos para prefeituras gerenciarem o programa, tem descredenciado cada vez
mais equipes, devido a irregularidades encontradas. Isso acontece, por exemplo,
quando um mesmo médico está inscrito no banco de dados federal como integrante
da equipe de Saúde da Família em duas cidades, o que não é permitido caso a
carga horária ultrapasse 40h semanais. Quando uma equipe é descredenciada,
repasses financeiros para os municípios são suspensos temporariamente, até que
o problema seja sanado.
— Enrijecemos as regras.
Situações que passavam despercebidas antes agora não passam mais — diz o
diretor de Atenção Básica do Ministério da Saúde, Heider Pinto.
O trabalho de visitar as famílias não está sendo realizado satisfatoriamente. |
As fiscalizações da Controladoria
Geral da União (CGU) em municípios de todo o país também têm flagrado
irregularidades na atuação das equipes de Saúde da Família. Das 57 cidades
sorteadas para serem fiscalizadas na última vistoria da CGU, o órgão encontrou
falhas médias e graves em 55. Entre as falhas, estão a desobediência da
composição mínima da equipe de medicina familiar (o que ocorreu em 8% dos casos
no último sorteio); a falta de materiais e equipamentos (situação constatada em
20% dos casos); e o descumprimento da carga horária de trabalho por enfermeiros
(27%) e médicos (44%). Segundo a CGU, em outras cidades fiscalizadas
anteriormente também foram detectados problemas como estes.
Equipes incompletas são uma
realidade em Natal (RN), onde 55 dos 116 grupos de profissionais estão atuando
sem médico. De acordo com o Ministério da Saúde, cada equipe tem de ter, no
mínimo, um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e seis agentes
comunitários de Saúde. A prefeitura de Natal admite a necessidade de realizar
concurso para tentar preencher as vagas.
— Quando você fica sem médico, os
demais profissionais da equipe trabalham fazendo o que podem, dentro de suas
atribuições. Vai ter que ter concurso realmente — afirma a coordenadora da
Estratégia de Saúde da Família da prefeitura de Natal, Ariane Rose de Macedo.
Segundo a Federação Nacional dos
Médicos (Fenam), em muitos casos, as prefeituras tentam contratar médicos para
as equipes de Saúde da Família de forma precária, sem que eles tenham vínculos
empregatícios, o que dificulta a atração dos profissionais.
De acordo com o coordenador da
Câmara Técnica de Medicina de Família do Conselho Federal de Medicina (CFM),
Celso Murad, muitas vezes os médicos não querem trabalhar com medicina da
família porque o tipo de contratação não é atraente e não há planos de
carreira.
— A maior dificuldade que se tem
é a manutenção das equipes de Saúde da Família nos municípios alvo. A atenção
que os municípios dão ao programa muda de acordo com a ideologia política do
local. Muitas vezes não há vínculo permanente entre a equipe e a comunidade que
ela assiste — diz Murad.
Para a Associação Baiana de
Medicina de Família e Comunidade (Abamefac), os contratos não atrativos
explicam o fato de a capital baiana ser a capital com a pior cobertura do
programa do país. Na cidade, a iniciativa só abrangia 13,32% da população da
cidade em novembro de 2012. No país, a cobertura do programa chega a 54,84% dos
brasileiros e está crescendo, segundo o Ministério da Saúde.
— O programa Saúde da Família em
Salvador está estagnado. Profissionais do programa ficaram trabalhando sem
vínculo empregatício por anos — diz Leandro Barretto, presidente da Abamefac.
A prefeitura de Salvador admite
que a cobertura do programa na cidade não é adequada e diz que convocará
médicos concursados.
Para tentar atrair mais médicos,
o Ministério da Saúde flexibilizou, no fim de 2011, a carga horária dos
profissionais, que agora podem trabalhar por 20h ou 30h semanais e não apenas
por 40h. Muitos médicos que atuam no programa são recém-formados, mas é comum
que eles deixem o cargo para fazer residência em uma especialidade médica.
— Vou tentar me especializar em
oncologia clínica. Não pensava em fazer medicina da família no início da
faculdade. Mas, antes de mergulhar numa especialidade, eu quis saber como
funciona o SUS de perto — afirma o médico Victor Hugo Valois, que trabalha na
região central de São Paulo como médico de Família da prefeitura.
Entidades médicas também
reivindicam o aumento das verbas destinadas à atenção básica pelos governos
federal, estaduais e municipais, e reclamam do número de pessoas sob
responsabilidade de cada equipe do programa, que seria muito elevado.
Atendimento. Victor Hugo Valois, médico da Família da prefeitura de São Paulo, com uma paciente Foto: O Globo / Eliária Andrade |
— A maioria das equipes está
sobrecarregada, principalmente nas áreas mais pobres. Os municípios mais
organizados deixam as equipes com responsabilidade por menos pessoas, por
2.500, por exemplo. Mas há município que coloca quatro mil pessoas sob
responsabilidade de cada equipe. Isso acarreta filas e as pessoas demoram para
conseguir atendimento — diz Nulvio Lermen Júnior, presidente da Sociedade
Brasileira de Medicina de Família e Comunidade
Mais de mil municípios com
dificuldade
A falta de médicos e a
dificuldade para atrair esses profissionais para municípios do interior do país
e das periferias das grandes cidades não são um problema exclusivo da
Estratégia de Saúde da Família. Como revelou reportagem do GLOBO em abril,
1.228 municípios pediram ajuda ao Ministério da Saúde para atrair profissionais
recém-formados em 2011.
Mas somente 1.460 médicos
demonstraram interesse nas 7.193 vagas disponíveis, o que corresponde a 20% da
demanda, de acordo com números do Programa de Valorização do Profissional da
Atenção Básica (Provab).
O programa oferece bônus de 10%
nas provas de ingresso em residências médicas a recém-formados que concordarem
em trabalhar por um ano em determinadas cidades.
Porém, até abril de 2012, 233
municípios não conseguiram atrair nenhum médico. E somente 460 médicos já
haviam começado a trabalhar até a primeira semana de abril.
Um estudo divulgado pelo Conselho
Federal de Medicina em novembro de 2011 mostrou que o Brasil tinha uma taxa de
1,95 médico para cada mil habitantes. O governo quer que essa taxa
médico/habitante seja elevada para uma relação que seja de 2,5 médicos para
cada mil habitantes até 2020.
Para o Conselho Federal de
Medicina, o número de médicos do país é adequado, e o problema está na maneira
como eles estão distribuídos pelas regiões.
Em abril, o Ministério da Saúde
identificou que 2.130 cidades tinham dificuldades para manter ou expandir o
Programa Saúde da Família. A rotatividade era alta: em 1.190 cidades, mais de
75% das equipes de Saúde da Família trocam de médico pelo menos uma vez por
ano. Em março de 2012, havia 26 cidades que não tinham médico de Família.
EM TEMPO. Para complementar a excelente
reportagem de O GLOBO, o Landisvalth Blog insiste na linha de que há uma
preocupação de busca recursos do Governo Federal, mas não há a mesma
preocupação em aplicá-los com a devida lisura. O município de Heliópolis foi
penalizado com a suspensão de recursos do Ministério da Saúde por
irregularidades diversas. Sanados os problemas, os recursos voltaram.
Entretanto, desde a derrota do atual gestor, não há médicos em Heliópolis.
Todas as equipes foram desfeitas e a população doente mendiga atendimento e
socorro. A prioridade não é a saúde do povo, é o recurso federal que possa
gerar algum tipo de benefício político ou econômico. E porque o governo federal
ainda não desistiu deste modelo de Saúde da Família? Porque são os agentes
políticos em cada rincão deste país que sustentam os agentes políticos de
Brasília e de Salvador. E este modelo não é novo!