Com o apoio de 3 milhões de
ativistas espalhados pelo mundo, um escritório recém-aberto no Brasil e um novo
diretor brasileiro, a Anista Internacional vai intensificar o trabalho por uma
sociedade na qual o respeito aos direitos humanos não seja privilégio de alguns
Por: Mariana Tavares – da Revista
PLANETA.
Mobilizar cidadãos comuns em
defesa dos direitos humanos é a premissa básica que norteia o trabalho da
Anistia Internacional (AI), organização fundada em 1961 pelo advogado inglês
Peter Benenson, indignado com a notícia da prisão de dois jovens portugueses
que ousaram brindar à liberdade durante a ditadura salazarista. Hoje com mais
de três milhões de membros e apoiadores voluntários espalhados pelo globo, a AI
obtém vitórias importantes por meio de seu considerável poder de pressão, como,
por exemplo, a adoção da Convenção contra a Tortura pela ONU e a libertação de
centenas de pessoas detidas por suas crenças políticas em vários países.
No fim do ano passado, a AI
reabriu o escritório do Rio de Janeiro, que havia funcionado de 1984 até 2001.
A direção da seção brasileira foi entregue ao cientista político Atila Roque,
ex-assessor do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, no Instituto Brasileiro
de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), além de ex-diretor-executivo da ONG
ActionAid International, em Washington, e um dos fundadores do Fórum Social Mundial.
Nesta entrevista, Roque fala sobre as prioridades da Anistia no Brasil e os
avanços e desafios para os direitos humanos no país e no mundo.
Por que a Anistia Internacional
decidiu reabrir seu escritório no Brasil?
Melhorar a segurança pública e as condições das penitenciárias é um imperativo no Brasil. |
O peso internacional crescente do
país e a força da sociedade civil brasileira tornaram inadiável a retomada de
uma presença da Anistia Internacional aqui. As conquistas recentes e os
desafios pendentes no campo dos direitos humanos fazem do Brasil, em grande
medida, um laboratório do que é possível alcançar com a mobilização social e a
participação cidadã.
Nos últimos dez anos, o que mudou
no cenário dos direitos humanos?
É importante lembrar que, mesmo
sem uma presença física no Brasil, a AI nunca deixou de trabalhar sobre as
violações de direitos humanos no país. Entretanto, durante esse período
registraram-se importantes mudanças que precisam estar refletidas no modo como
trabalhamos aqui. A principal foi a consolidação da democracia e de uma
perspectiva mais ampla de direitos humanos, incorporando as dimensões
econômicas, sociais e ambientais. Também assistimos ao fortalecimento dos
instrumentos legais e institucionais de combate a violações de direitos. Uma
das áreas em que estamos verificando importantes progressos, ainda que a
estrada adiante continue árdua, é a da segurança pública e da violência,
especialmente a cometida contra a vida. No âmbito das iniciativas legislativas,
devemos destacar a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, que representou um
verdadeiro salto civilizatório no combate à violência contra as mulheres.
Quais as prioridades da AI no
Brasil?
A AI não deixará de ser uma
organização internacional, portanto continuaremos a combinar uma agenda de
defesa de direitos humanos em escala global com questões domésticas. A presença
do escritório no Brasil vai permitir um aprofundamento das relações com a
sociedade civil e uma proximidade maior com as pessoas diretamente afetadas
pelos problemas. Entre os temas prioritários destacamse a questão da segurança
pública, a reforma da polícia e a violência letal, inclusive a situação
prisional, a violência contra as mulheres, as milícias e os homicídios de
jovens negros. Estaremos atentos à temática da reforma urbana, especialmente ao
impacto trazido pelas remoções forçadas sobre as comunidades, e às grandes
obras que serão realizadas para a Copa do Mundo e a Olimpíada; à questão
indígena e às consequências sobre as comunidades locais dos projetos de
infraestrutura e desenvolvimento, como o complexo hidrelétrico do Rio Madeira e
a Usina de Belo Monte, no Pará. Também dedicaremos atenção especial à política
externa brasileira e ao posicionamento do país em relação a violações de
direitos em outras partes do mundo, tais como as que vêm ocorrendo no contexto
da chamada Primavera Árabe.
Quais são os desafios para esse
tipo de trabalho no país?
Atila Roque é cientista político e diretor da seção brasileira da Anistia Internacional. Foi diretor da ActionAid International e um dos fundadores do Fórum Social Mundial. |
O principal é o de contribuir, a
partir da mobilização cidadã e do diálogo aberto na esfera pública, para
fortalecer e consolidar uma cultura de respeito aos direitos humanos. Entender
que não pode haver direitos para uns e direitos diferenciados para outros
reflete o grau de civilização de uma sociedade. O respeito aos direitos humanos
deve ser para todos, sem exceção. No passado, era forte, em certos setores da
sociedade, o preconceito de que direitos humanos significavam defesa para
bandidos. Felizmente, isso está mudando. Mas é preciso continuar um trabalho
constante de desconstrução de estereótipos para eliminar o sentimento
irracional que gera insensibilidade e nos leva a ter medo da criança que está
na rua. Desenvolvimento e democracia não podem prescindir do respeito aos
direitos humanos.
Muitas das principais violações
de direitos humanos cometidas no Brasil são questões antigas, como a violência
policial e a situação penitenciária. O que falta para esses problemas serem
resolvidos?
Em primeiro lugar, a questão da
impunidade. No Brasil, ainda não existem mecanismos eficazes de controle e de
responsabilização pelos crimes cometidos por agentes do Estado, e não me refiro
apenas àquela pessoa que se encontra na ponta executora da violação de direitos
- o policial ou o agente penitenciário, para citar exemplos mais constantes. É
necessário que aqueles em posição de comando e que admitem a prática
sistemática de tortura ou extermínio como método de repressão ao crime também
sejam investigados e punidos. Em segundo lugar, é preciso haver uma vontade
política de acabar com essas violações. Infelizmente, temos visto como
interesses políticos ou econômicos de alguns continuam a prevalecer. Na área de
segurança pública, temos testemunhado alguns avanços, mas estamos longe de
colocar em prática um processo de reforma que promova um impacto sistêmico e
nacional. A segurança pública no Brasil ainda sofre distorções decorrentes de
anos de autoritarismo e de baixíssimo nível de integração entre unidades
federativas e União. Faltam instrumentos de informação. Não há possibilidade de
acessar dados online a respeito de crimes. É preciso uma política que premie o
agente que faz bem seu trabalho e que puna rigorosamente aquele que rompe com a
legalidade. É fundamental ainda a ênfase no diagnóstico - caso contrário, não
sabemos onde investir nem como fazer política pública. A agenda dos sonhos
seria tratar a segurança de forma integral, não apenas como uma resposta a uma
situação de emergência.
A criação da Comissão da Verdade
sofreu críticas por um possível caráter "revanchista" e por
"reabrir feridas" da história do país. Como avançar nessa área?
Foco da Anistia: família de posseiros na zona leste de São Paulo, removida pela subprefeitura de Guainazes. |
É inadmissível que ainda tratemos
o tema da repressão como tabu e em meio a tanta dificuldade de acesso à
informação. As famílias precisam saber o que aconteceu com seus filhos e
filhas. Não olhar com transparência e sem medo é se recusar a aprender com o
próprio erro. É um tumor que segue consumindo as forças da democracia
brasileira. A comissão deveria ter sido instalada há tempos. É muito positivo
que o Estado e a sociedade brasileira finalmente comecem a examinar o que
aconteceu nos anos de terrorismo de Estado no país. Acreditar que garantir
justiça para vítimas de crimes contra a humanidade seja "revanchismo"
é perigoso. A falta desse processo no Brasil não somente afetou as vítimas da
ditadura e seus familiares como o país inteiro. Durante vários anos de
pesquisa, após o fim da ditadura, a AI continuou a testemunhar ex-agentes do
regime militar em posições de poder nos vários sistemas de segurança pública.
As práticas de tortura e
execuções sumárias se enraizaram como métodos de repressão policial, reforçados
por um conceito profundo de impunidade. Reabrir o debate sobre esse período e
acessar sem restrições os documentos é importante para mostrar que o Brasil
nunca mais aceitará essas práticas.
O ano de 2011 foi marcado por
movimentos populares no Egito, Síria, Chile e Estados Unidos. Ainda que
distintos, todos remetem à luta por direitos, à presença maciça da juventude e
ao uso de novas tecnologias. Estamos vivendo um novo momento na luta pelos
direitos humanos?
Estou convencido de que vivemos
um período de grandes invenções e de renovação das formas de mobilização e lutas
sociais, o que não significa o fim dos movimentos sociais e das instituições
políticas como as conhecemos ao longo do século 20. Em comum a todas essas
revoltas, encontramos um sentido renovado da noção de direitos humanos e de
mobilização cidadã. Estamos falando de pessoas comuns que se sentem mobilizadas
a se manifestar contra situações de injustiça e de opressão. A crise é profunda
e irreversível, mas os seus resultados vão depender da capacidade de
aproveitarmos este momento para realizar uma revisão dos valores que constituem
as sociedades, trazendo para o centro a questão do respeito aos direitos
humanos. A AI quer dar uma contribuição relevante a esse processo. Um dos
desafios será criar os canais de diálogo e de comunicação com esses novos movimentos
predominantemente de jovens à margem da sociedade, em grande parte do
"Sul" do mundo - nos países em desenvolvimento ou pobres -, e fazer
com que suas vozes sejam incorporadas às redes e aos movimentos dos quais
fazemos parte, assim como representadas nas campanhas e ações que promovemos
pelo mundo.