O procurador da República, Roberto Gurgel, e sua mulher, a
subprocuradora Cláudia Sampaio, engavetaram nos últimos quatro anos processos
contra pelo menos 30 políticos. Excesso de poder na mão dos dois é questionado
na Procuradoria
Claudio Dantas Sequeira e Izabelle Torres – da revista ISTOÉ
UNIÃO Gurgel e Cláudia Sampaio atuam em conjunto e desagradam aos demais procuradores |
Em sessão secreta da CPI do Cachoeira, realizada na
terça-feira 8, o delegado Raul Alexandre Marques Souza, que comandou a Operação
Vegas, fez uma grave denúncia. Acusou o procurador-geral, Roberto Gurgel, e sua
mulher, a subprocuradora Cláudia Sampaio, de engavetarem o pedido de
investigação apresentado contra o senador Demóstenes Torres em 2009. A omissão
teve importantes consequências políticas. Adiou em três anos a denúncia contra
Demóstenes, que voltaria a figurar nas investigações da Operação Monte Carlo,
sucessora da Vegas. Porém, mais do que jogar luz sobre a negligência do
procurador-geral e seus desdobramentos, a revelação do delegado expôs a
existência de um esquema de poder na cúpula da Procuradoria da República, que
tem como uma de suas prerrogativas denunciar a corrupção. Há um mês, ISTOÉ
mostrou como Gurgel tem usado seu cargo para proteger quem deveria investigar.
Agora se sabe que ele não estava sozinho. Contava com a fidelidade silenciosa
de Cláudia, com quem passou a dividir não só o mesmo teto, mas os principais
segredos da República.
Um levantamento dos atos da subprocuradora, todos avalizados
pelo marido, revelam que Cláudia beneficiou com sua caneta ministros de Estado,
governadores, prefeitos e parlamentares. Só no Congresso, mais de 30 políticos,
entre deputados e senadores, tiveram inquéritos, ações penais, denúncias e
procedimentos investigativos sumariamente arquivados nos últimos quatro anos. É
o caso, por exemplo, do atual líder do PT na Câmara, Jilmar Tatto, o ex-líder
do PSDB Duarte Nogueira, o deputado federal Paulinho da Força (PDT) e o
deputado licenciado Márcio França (PSB), atual secretário de Turismo do governo
Geraldo Alckmin. Entre os senadores que Cláudia livrou da Justiça estão Marta
Suplicy (PT), Roberto Requião (PMDB) e Alfredo Nascimento (PR), ex-ministro dos
Transportes que caiu em desgraça após as articulações de Carlinhos Cachoeira. Não
quer dizer que, em todos os casos, havia indícios suficientes para incriminar
os políticos. Mas os números são de fato impressionantes e reveladores de uma
tendência.
Senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) |
A enxurrada de processos envolvendo políticos poderosos sob
a batuta da subprocuradora é resultado de uma soma de fatores. Cláudia é
criminalista, área que seu marido não domina. Além disso, é uma das poucas
pessoas dentro da Procuradoria que desfruta da confiança de Gurgel. O
procurador, normalmente reservado, está cada vez mais isolado após anos de uma
luta fratricida entre os integrantes do chamado “grupo dos tuiuiús”. Desde a
saída do procurador Geraldo Brindeiro, ligado ao governo FHC, o primeiro dos
considerados tuiuiús a assumir a PGR foi Cláudio Fonteles, agora indicado para
compor a Comissão da Verdade. Um acordo previa que os integrantes do grupo se
revezassem a cada dois anos no mais alto cargo do MP. Fonteles cumpriu o
acordo, o que não aconteceu quando Antonio Fernando de Souza assumiu. Ele
articulou sua recondução, deflagrando uma luta interna. Gurgel, eleito em 2009,
prometeu apaziguar os ânimos, mas acabou fazendo o mesmo e, na avaliação de
integrantes do MP, traiu seus colegas. No ano passado, foi reconduzido depois
de engavetar a investigação contra o ex-ministro da Casa Civil, Antônio
Palocci.
Na avaliação de procuradores ouvidos por ISTOÉ, desde a
gestão Fonteles o casal já marcava presença nos processos mais importantes e de
maior repercussão que chegavam ao MP. “A divisão de responsabilidades sobre os
casos há anos já mostrava que o cenário chegaria ao ponto que se encontra hoje.
É quase insustentável”, conta um experiente subprocurador.
Na gestão de Antonio Fernando de Souza, de quem Gurgel era o
número dois, a subprocuradora Cláudia Sampaio passou a conduzir inquéritos de
repercussão nacional, como os que resultaram das operações Boi Barrica (Faktor)
e Hurricane. Os dois envolveram gente graúda e também se arrastam na Justiça.
Na Hurricane, Cláudia investigava e, ao mesmo tempo, Gurgel dava os pareceres
sobre os pedidos de habeas corpus apresentados pelos denunciados, o que foi
questionado por advogados. Quando Gurgel chegou ao poder efetivamente, a
pitoresca relação funcional se consolidou, causando fissuras não só na
Procuradoria como também no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). O
privilégio concedido pelo procurador-geral à sua mulher, segundo integrantes do
Ministério Público, põe em dúvida a capacidade de outros subprocuradores que
têm atribuição semelhante e lança um véu de desconfiança sobre o trabalho do
órgão. “Se não há ilegalidade, há ao menos uma vedação moral”, avalia um
conselheiro do CNMP.
FIM DE LINHA Ao contrário do casal de procuradores, parlamentares encontraram indícios suficientes para pedir a cassação de Demóstenes Torres no Conselho de Ética da Câmara |
No Congresso, a pressão pela convocação do casal alcançou
níveis insuportáveis depois que se soube que, em 2009, ao receber o inquérito
da Operação Vegas, o procurador-geral, como de praxe, encaminhou o caso a
Cláudia, que entendeu não haver provas suficientes para abrir uma investigação
contra Demóstenes. Gurgel se queixou a ministros do STF dos ataques que vem
sofrendo e disse que na época realmente não havia o que ser feito. Para um dos
ministros, ele já faz um mea-culpa porque foi surpreendido pelo vazamento das
informações. Em público, Gurgel diz que está sendo atacado pela CPI porque o
julgamento do mensalão está próximo e ele terá cinco horas para pedir punição
para os 38 réus.
Oficialmente, os ministros do STF se posicionaram em favor
de Gurgel. Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes, por exemplo, afirmam que
desestabilizar a Procuradoria da República, neste momento, pode sim interferir
no julgamento do mensalão. Eles também se manifestaram contra a obrigatoriedade
de Gurgel ir à CPI. Existe, de fato, a tentativa de setores do PT de tentar
desqualificar o julgamento do mensalão, cujas denúncias contra integrantes do
partido são avalizadas por Gurgel. Isso não quer dizer que as ações de Gurgel e
sua esposa não possam ser questionadas. Sobretudo quando há estranhas omissões
em processos contra políticos. Ademais, se as suspeitas que recaem sobre ele e
sua esposa fossem mesmo apenas uma retaliação dos petistas, a oposição não
estaria tão empenhada e decidida a também pressioná-lo por explicações. “Há
muito o que ser questionado. Não há motivos para o caso ter parado tanto tempo
com tanto indício de corrupção”, opina o líder do PSDB no Senado, Álvaro Dias
(PR). Para o deputado Cândido Vaccarezza (PT/SP), Gurgel precisa explicar seu
comportamento. “É uma postura desqualificada”, diz. O senador Randolfe
Rodrigues (PSOL-AP) promete trabalhar na Comissão para que Cláudia Sampaio seja
convocada a depor. “Acho que, por tudo o que foi dito e por todas as dúvidas
que permaneceram, a subprocuradora precisa ser ouvida pela CPI. Há muito o que
ser questionado”, avisou Rodrigues.
Se Cláudia dificilmente escapará de prestar depoimentos à
comissão, por ora seu marido conseguiu um respiro. Ele convenceu o relator da
CPI, deputado Odair Cunha (PT-MG), a esclarecer as dúvidas dos parlamentares
por escrito. Mas, conhecendo agora a dimensão da conduta de Gurgel na PGR, a
solução pode não ser suficiente. Afinal, ele terá que explicar não só a postura
no caso Cachoeira, mas a inércia que caracteriza sua gestão na PGR, com mais de
quatro mil processos parados.
Nos próximos dias, os parlamentares vão se concentrar em
outra frente de ataque contra Gurgel. Especialistas e políticos mais
experientes não entendem por que o procurador ainda não entrou com uma ação
bloqueando os bens da empreiteira Delta – epicentro do esquema de Cachoeira –
ou do antigo dono da empresa Fernando Cavendish, para garantir o ressarcimento
ao erário do dinheiro desviado. Subprocuradores ouvidos por ISTOÉ dizem que
esse seria um procedimento de praxe e a única forma de possibilitar retorno de
pelo menos parte do dinheiro desviado pelo esquema de Cachoeira aos cofres
públicos. Sem uma ação que impeça a transferência de patrimônio para novos
donos, dificilmente será possível recuperar o que foi desviado. Mais uma vez,
os corruptos sairiam ganhando com a atuação do atual procurador.