Joana D´Arc é mais um falso mito revelado numa sociedade fracassada (foto: Febrace-Youtube) |
Vivemos tempos sombrios e, como
uma espécie de autodefesa, necessitamos todos os dias de falsos ídolos para que
preencham os espaços vazios da nossa existência fracassada. Sim, nossa geração
fracassou. Para cobrir nossa incompetência, buscamos fatos que alicercem, de
forma incontestável, o caminho da nossa teimosia ideológica para cada vez mais
nos afastarmos da realidade que bate na nossa cara. A pesquisadora Joana D'Arc
Félix de Sousa é o exemplo mais cruel dessa era. Nunca fez pós-doutorado em
Harvard e, ainda como tempero, terá que devolver R$ 278 mil à Fapesp (Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) por não prestar contas de auxílios
recebidos em uma pesquisa realizada em 2007.
A personagem, exemplo de falso
mito, teria sua vida cotada para virar filme em coprodução da atriz Taís
Araújo. Na última terça-feira (14), o jornal O Estado de S. Paulo revelou que
ela na verdade não concluiu um pós-doutorado em Harvard, como estava informado
em seu currículo Lattes. A informação foi modificada, citando o curso como
"interrompido". Em fevereiro de 2013, a 14ª Vara da Fazenda Pública
de São Paulo proferiu sentença do juiz Randolfo Ferraz de Campos, condenando-a
a devolver dinheiro à Fapesp. Na decisão, o magistrado diz que, além da
ausência da prestação de contas, há ainda irregularidades nas contas que
eventualmente foram prestadas pela pesquisadora da cidade de Franca-SP.
A Justiça cobrou de Joana o
ressarcimento dos valores em ao menos sete despachos entre 2013 e 2016, sem que
houvesse manifestação da ré. Em maio de 2017, a ação foi suspensa por tempo
indeterminado porque ela não possuía bens no valor da ação para serem penhorados.
A Fapesp informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não comenta
ações na Justiça. A pesquisa de Joana - sob o título "Valorização de
resíduos sólidos classe 1 de curtumes, fábricas de calçados e artefatos
(retalhos de couros em semiacabado e acabado)" recebeu auxílio no Programa
Pequenas Empresas do órgão.
A fundação disse que qualquer
pessoa pode apresentar um projeto para esse tipo de programa. Caso seja
aprovado, é preciso que o beneficiado constitua pessoa jurídica. Neste caso
específico, a empresa foi cadastrada em nome de Joana. A primeira fase do
Pequenas Empresas dura nove meses e pagava R$ 3.939,30 por mês ao beneficiado
em 2007. Joana prosseguiu para a segunda fase do projeto, em que o auxílio
saltou para R$ 5.828,70 - a duração é de dois anos. A ação da Fapesp foi
proposta em 2012 e cobra os valores recebidos pela cientista de 2007 a 2010,
com juros e atualização monetária.
No currículo Lattes de Joana,
ainda consta que ela é bolsista da Fapesp, desde 2007, ano em que ingressou com
seu projeto junto à agência de pesquisas. Segundo a Fapesp, isso não é verdade.
O vínculo dela com o órgão se encerrou em 2010. Além de ela não ter concluído
pós-doutorado nos EUA, outra contradição em sua trajetória está em sua idade de
ingresso na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), onde fez a graduação
em química, mestrado e doutorado. Em entrevistas, Joana disse mais de uma vez
que aos 14 anos de idade foi aprovada nos vestibulares da USP (Universidade de
São Paulo), Unesp (Universidade Estadual Paulista) e Unicamp.
Ela iniciou a graduação em 1983,
quando supostamente tinha 19 anos. A Folha, que publicou reportagem sobre a
pesquisadora em 2018, está revisando as informações de seu currículo e das
reportagens, inclusive sua idade, declarada de forma variada a diferentes
entrevistadores (48 à Folha em 2018, 55 na conta do Estado, 39 em uma
entrevista e em redes sociais, que foram apagadas após o caso). Em entrevista à
Folha de S.Paulo nesta quarta (15), a professora admitiu que nunca fez pesquisa
na Universidade Harvard e classificou a inclusão dessa informação em seu
currículo Lattes e em diversas entrevistas como "uma falha", mas
negou que tenha agido de má-fé. "A gente se empolga e acaba falando
demais. É uma falha, peço desculpas, é uma falha", afirmou.
Antes de ser desmascarada, Joana
era exemplo de superação. Quase uma deusa que rompeu com um sistema perverso,
excludente, discriminador, seletivo. Ela é negra, de origem humilde. A heroína
que quebrou as correntes impostas por esta sociedade cruel! Triunfou!
Não! Só era mais um falso mito!
Sabemos que dirão ser tudo
invenção da imprensa golpista, da elite rancorosa. Talvez digam até que é culpa
da Rede Globo, mas precisamos encarar uma verdade cruel: há negros que roubam,
mentem, corrompem e são corrompidos. Há pobres ladrões, cruéis e sem piedade.
Há brancos bondosos, cumpridores dos deveres, estadistas, democratas e humanos.
Há ricos preocupados com a transformação para melhor da nossa sociedade. O
contrário também é válido, porque convivemos o tempo todo com o bem e o mal.
Uma das ferramentas que a sociedade inventou para combater alguns males sociais
foi a Lei. Ela tem que valer para todos.
Joana D'Arc Félix de Sousa já
seria exemplo de superação porque conseguiu fazer graduação em química,
mestrado e doutorado na Unicamp – o que é um feito já histórico para qualquer
ser humano, de qualquer classe, cor ou origem. O mau-caratismo precisou de
Harvard para criar o falso mito. Foi ainda ajudada pela sociedade dita
discriminadora e a célula da maldade a impediu de prestar contas. Como estamos
em evolução, terá que enfrentar as garras da Lei que, em outros tempos, era
seletiva.
Landisvalth Lima