A Pedra do Reino da Serra do Catolé (foto: Landisvalth Lima) |
Numa reportagem do UOL, assinada
pelo jornalista Marcelo Testoni, denominada “Brasil, 1838: Sacrifícios humanos”,
há todo um histórico detalhado, que passamos aqui a reproduzir, sobre uma seita
no sertão de Pernambuco, mais precisamente no município de São José do
Belmonte, na Serra do catolé, divisa com a Paraíba, que brutalizava pessoas
para trazer de volta Dom Sebastião. O episódio foi retratado em várias obras da
literatura brasileira, como A Pedra do
Reino, de Ariano Suassuna, e Pedra
Bonita, de José Lins do Rego. Estive no local há alguns anos e resgato aqui
este fenômeno esquecido por vários historiadores. Vamos à reportagem de
Marcelo.
No dia 24 de junho de 1578, um
Exército de 24 mil portugueses, comandado pelo seu rei dom Sebastião I, partiu
de Lisboa e após quase um mês navegando pelo Atlântico em 847 embarcações
chegou a Tânger, no Marrocos. Dali marchou por sete dias até a cidade de
Alcácer-Quibir. O objetivo era atacar, com seus cavaleiros, lanças, espadas,
arcabuzes e canhões, o rei marroquino Abd al-Malik. A vitória mataria dois
coelhos: afastaria as ameaças dos muçulmanos ao litoral português e o país
seria o protagonista de um processo de cristianização e colonização do norte da
África.
Mas o desastre foi total para os
portugueses. Abd al-Malik também tinha cavaleiros, lanças, espadas, arcabuzes e
canhões. E a vantagem de um Exército de 60 mil homens. Três marroquinos para
cada português. Metade do Exército lusitano foi morto na batalha e a outra
metade, presa.
O corpo de dom Sebastião nunca
seria encontrado. Aos 24 anos, o rei não deixou herdeiro ao trono e Portugal
seria governado pela Espanha por 60 anos. Do fim misterioso de dom Sebastião
surgiu o sebastianismo, a crença mística de que ele voltaria para afastar o
domínio estrangeiro ou para livrar dos seus opressores os pobres e infelizes.
O mais popular divulgador do
sebastianismo foi o sapateiro da vila portuguesa de Trancoso Gonçalo Annes
Bandarra, que previu, em poemas, a volta de dom Sebastião,“o Desejado”.Suas
Trovas fizeram enorme sucesso. Foram proibidas pela Inquisição, mas continuaram
circulando clandestinamente por décadas, mesmo após sua morte. A lenda se
espalhou por Portugal e, 260 anos mais tarde, tornou-se realidade no alto de
uma montanha próxima à cidade de São José do Belmonte, sertão de Pernambuco,
transformando-se em um dos episódios mais bizarros e sinistros da história
brasileira.
Primeiro Reinado
Tudo começou em 1838, na Pedra
Bonita (hoje, Pedra do Reino) – um platô encimado por dois rochedos paralelos,
cada um com 30 m de altura –, quando João Antônio Vieira dos Santos começou a
abordar os habitantes mostrando-lhes duas pepitas, as quais ele dizia serem
preciosas. João Antônio afirmava que as havia conseguido graças ao rei dom
Sebastião, que o conduzia todos os dias em sonho a seu esconderijo.
O rei português ainda lhe teria
indicado que o desencanto e a revelação de seu reino estariam próximos e, assim
que isso acontecesse, ele retornaria ao mundo como o Messias. Para dar
fundamento, digamos, acadêmico a seus argumentos, o profeta levava consigo,
além das pedrinhas, os textos de As Trovas do Bandarra, que tanto sucesso
haviam feito em Portugal.“Esse fato demonstra a perspicácia do falso profeta,
que, conhecendo o nível de esclarecimento de seus ouvintes, apropriou-se de uma
narrativa de convencimento”, diz Marcio Honorio de Godoy, da PUC-SP e autor de
O Desejado e o Encoberto, sobre o sebastianismo.
Moradores de sítios vizinhos
começaram a aderir à crença e visitar o complexo rochoso encantado, onde dom
Sebastião dormia, segundo suas pregações. Com a popularidade crescendo, o
profeta foi coroado rei de Pedra Bonita, cargo provisório enquanto dom Sebastião
não despertava. Mas a agitação atraiu os olhares das autoridades.
O movimento provocava o
esvaziamento da mão de obra rural e disseminava uma seita pagã. Enfim, um caso
de polícia e de Igreja. O padre Francisco José Correia, respeitado na região,
foi acionado. “O embusteiro João Antônio então se apresentou ao sacerdote,
arrependeu-se de sua conduta e devolveu-lhe as falsas pedras”, conta Belarmino
de Souza Neto, historiador e autor de Flores do Pajeú: História e Tradições.
O que deveria ser o fim do sebastianismo
sertanejo gerou uma crença ainda mais fanática e perigosa. João Antônio assumiu
a farsa e saiu da cidade, mas antes passou a coroa para o cunhado João
Ferreira. O segundo rei de Pedra Bonita também dizia ter visões de dom
Sebastião e intensificou a divulgação da profecia. Carismático, ganhou muita
popularidade e conseguiu aumentar o número de seguidores para 300. Eles o
chamavam de “Sua Santidade El-Rei” e beijavam-lhe os pés. Decidiu estabelecer
sua corte ali mesmo, junto às duas grandes rochas de Pedra Bonita – local de
rituais de desencantamento que permitiram ao outro rei, o desaparecido em
Alcácer-Quibir, e que no momento dormia, voltar ao mundo real.
Segundo Reinado
São José do Belmonte (foto: Evandro Lira) |
É nesse momento que as coisas
começaram a degringolar. Ferreira decidiu estabelecer sua casa em um dos blocos
de rocha. Nela, eram promovidos festejos e beberagens entre seus associados,
que se drogavam com manacá e jurema, ervas com propriedades alucinógenas, para
conseguir “entrar” no reino de dom Sebastião. Na segunda torre de pedra, foi
escavado o santuário – que servia de refeitório e para os rituais de
desvirginamento, nos quais, após cerimônias de casamento, as noivas eram
oferecidas em primeira mão ao monarca.
O que o novo rei pregava foi
registrado, em 1875, por Antônio Attico de Souza Leite, do Instituto
Arqueológico da Província de Pernambuco. “Um iluminado ali congregou toda a
população para o advento do reino encantado do rei dom Sebastião, que
irromperia castigando, inexorável, a humanidade ingrata”, escreveu. O dia a dia
dos sebastianistas era ocupado por rezas e cantorias. Na rotina não entravam a
preocupação com vestimentas ou com a higiene. Também não se tomava o cuidado de
cultivar vegetais ou criar animais. Caravanas de jagunços de confiança do rei
eram despachadas para recolher doações ou saquear fazendas vizinhas e, se possível,
buscar novos adeptos.
Ferreira tinha ideias próprias
de quais seriam os rituais exigidos para promover o desencantamento de dom
Sebastião. “Era necessário banhar as pedras e regar todo o campo vizinho com
sangue dos velhos, dos moços, das crianças e dos irracionais”, registrou
Antônio Attico.
A loucura começaria para valer
na manhã de 14 de maio de 1838. Ferreira anunciou que, numa visão, dom
Sebastião lhe garantira que o sangue dos seguidores o traria de volta. Durante
três dias, os fiéis, embalados por gritos, danças hipnóticas, música e bebidas
alcoólicas, mataram 30 crianças, 12 homens, 11 mulheres e 14 cães. Pais e mães
traziam como oferendas partes do corpo dos filhos. Aos pés do rei, arrancavam
orelhas, língua, dedos dos pés, das mãos ou genitais, relata Antônio Attico,
baseado em testemunhas.
Os cadáveres amontoavam-se e
eram colocados na base das duas pedras de maneira simétrica, separados por
sexo, idade e “qualidade”, esta última determinada de acordo com o tipo de
promessa e da entrega de entes queridos ao sacrifício que eles houvessem feito.
Quem se recusava ao sacrifício era tido como infiel e desprezível. “Os mais
fanáticos entendiam tal recusa como uma quebra na continuidade do ritual de
desencanto”, afirma Honorio de Godoy.
Terceiro Reinado
A loucura assassina de Sua
Santidade El-Rei fez surgir um terceiro personagem. Pedro Antônio Viera dos
Santos, irmão do primeiro rei, João Antônio, resolveu frear o ritual. Tomou a
palavra e fez um discurso carismático anunciando que ele também tinha uma
mensagem de dom Sebastião para divulgar. “Ele anunciou que dom Sebastião lhe
apareceu em uma visão cobrando o sangue do segundo rei para o desencantamento
ser concluído”, afirma o historiador Belarmino de Souza.
Os fiéis apoiaram imediatamente
a sugestão e começaram a gritar: “Viva El-Rei dom Sebastião! Viva nosso irmão
Pedro Antônio!” Deposto do seu título e na condição de um simples súdito, João
Ferreira, o amalucado messias, foi arrastado ao sacrifício. Seu crânio foi
esmigalhado e o corpo amarrado, pés e mãos, ao tronco de duas árvores grossas.
Ao vencedor, Pedro Antônio, foi passada a coroa. Era ele, agora, o terceiro
regente de Pedra Bonita. Sua primeira medida foi decretar a suspensão imediata
dos assassinatos.
A Batalha Final
Mas tamanho horror não poderia
escapar às autoridades. Enquanto no alto do morro a transição entre os dois
reinados acontecia, as denúncias dos sacrifícios humanos chegavam ao
conhecimento do major Manuel Pereira da Silva, autoridade militar de São José do
Belmonte.
Um vaqueiro, José Gomes, fugido
de Pedra Bonita, relatou as barbaridades. Curiosamente, o delator destacava a
frustração dos integrantes por terem sacrificado inocentes em vão, já que dom
Sebastião não havia desencantado.
O major partiu no dia seguinte
rumo à Pedra Bonita. Liderava um grupo formado por dois de seus irmãos,
Cypriano e Alexandre, e 26 soldados. Após um dia de caminhada, e ainda distante
do local da seita, a caravana fez uma pausa embaixo de alguns umbuzeiros. A
poucos metros do abrigo, no entanto, encontrou-se de frente com o novo rei dos
sebastianistas, Pedro Antônio, acompanhado de um séquito numeroso de pessoas
armadas com porretes e facões. O rei e sua corte haviam deixado Pedra Bonita
fugindo do cheiro dos cadáveres insepultos.
O encontro pegou os dois grupos
de surpresa. Os militares, em campo aberto, pareciam em desvantagem diante dos
sebastianistas. Mas estes estavam exaustos. Na batalha que se seguiu, o major
ganhou a guerra, mas pagou caro pela vitória. O rei, Pedro Antônio, e 16 de
seus seguidores foram mortos. Do lado dos militares, cinco vítimas fatais,
inclusive os dois irmãos do major. Ali, debaixo dos umbuzeiros, terminava, em
17 de maio de 1840, o sangrento reinado dos sebastianistas da Pedra Bonita, sem
que dom Sebastião acordasse para socorrê-los. O messianismo não se extinguira
no imaginário brasileiro. Grupos semelhantes surgiram. Um dos maiores, no
interior da Bahia, em 1896, foi liderado por Antônio Conselheiro e gerou a
Guerra de Canudos. Hoje, na Padre do Reino, para não apagar da memória popular,
há romarias no local e muita diversão, como foi possível ver no vídeo aqui
postado. Para quem desejar conhecer um pouco da cidade de São José do Belmonte, veja o vídeo feito por Adelson Pereira.