A presidenta da Argentina pode
ter no conterrâneo Francisco o aliado que precisa para encontrar saídas para a
crise econômica e reverter a debandada de empresas estrangeiras, como a Vale.
Haja milagre!
Por Denize BACOCCINA, Luís Artur
NOGUEIRA e Carla JIMENEZ – da revista ISTOÉ DINHEIRO.
Papa Francisco: 1º Latino e 1º Jesuítsa a chefiar a Igreja. É argentino. |
Enquanto o mundo celebrava o nome
de Jorge Mario Bergoglio, como o papa que sucedeu Bento XVI, a presidenta
argentina, Cristina Kirchner, mantinha sua agenda protocolar. Somente horas
depois de o papa Francisco ter sido anunciado para o comando da Igreja Católica,
Cristina falou, publicamente, sobre a escolha do novo pontífice. Estranhamente,
não demonstrou entusiasmo com a formidável notícia que seu país havia recebido:
o primeiro papa não europeu em 1.300 anos de história é argentino. “Desejamos,
de coração, a Francisco, que possa lograr um melhor grau de confraternização
entre os povos, e entre as religiões”, disse ela, num indisfarçado improviso,
durante um evento na capital.
Àquela altura, seus compatriotas
já estavam nas ruas celebrando a histórica escolha dos 115 cardeais, reunidos
no conclave, em Roma, nos últimos dias. “Boa noite, sou Francisco”, disse o
pontífice, do balcão do Vaticano, para o delírio da população argentina, que
vibrou com a escolha do papa, identificado com a causa dos menos favorecidos. A
última vez em que os argentinos haviam saído às ruas para fazer barulho foi no
dia 8 de novembro, quando mais de 700 mil pessoas foram protestar contra a
política econômica da presidenta. O descompasso de Cristina com o sentimento
geral da nação fica cada dia mais evidente, não só na celebração do novo papa,
mas nas medidas que vêm sendo implementadas por sua equipe de governo.
O tabelamento de preços para
evitar as pressões inflacionárias, e o controle de compra de moedas
estrangeiras, são algumas das medidas mais recentes do governo Cristina. Na
semana passada, os boatos eram de que a presidenta promoveria uma maxidesvalorização
do peso. Verdade ou não, o fato é que Cristina ainda paga a fatura da moratória
de seu país no final de 2001. Sem crédito internacional, o país vive uma
situação fiscal frágil, dependente das divisas com exportações. Enquanto as
commodities estavam em alta, até 2011, foi possível administrar o caos. Mas com
a queda das cotações a Argentina está à deriva. Será preciso mais que um
milagre para reverter o longo inferno astral da maior parceira do Brasil no
Mercosul.
A nomeação de um papa argentino,
porém, pode ser um alento para a viúva de Néstor Kirchner, que tem a chance de
ganhar um aliado importante em suas críticas ao sistema financeiro
internacional. Como Cristina, o líder católico é crítico das políticas
neoliberais. Em 2002, durante as negociações do país com o Fundo Monetário
Internacional (FMI), quando era arcebispo de Buenos Aires, ele disse que os
argentinos deveriam parar de “rezar” para o FMI, porque isso não ajudaria o
país a se recuperar de sua maior crise da história. Agora, Cristina tem a
chance de capitalizar o papel de liderança global do novo papa em seu
benefício. Quem sabe ele poderá ajudá-la nas difíceis negociações com credores
e parceiros econômicos.
“Espero que Francisco possa
convencer os poderosos do mundo, detentores de armamentos e do poder
financeiro, que finalmente dirijam um olhar a suas próprias sociedades e aos
países emergentes”, disse Cristina, na noite de quarta-feira 13. “Que o papa
leve a mensagem de diálogo a grandes potências do mundo, porque também queremos
o diálogo.” A presidenta terá de investir na diplomacia com o Vaticano, uma vez
que ela e Bergoglio tiveram divergências públicas. “Bergoglio sempre teve uma
relação fria com os Kirchner”, afirma o economista Dante Sica, da consultoria
Abeceb.com, de Buenos Aires. Kirchner, quando presidente, chegou a afirmar que
o então arcebispo de Buenos Aires era “o verdadeiro líder da oposição”, pelas
duras críticas que vinha recebendo por parte dele.
Três anos atrás, Bergoglio trocou
farpas com a presidenta, em função da legalização do casamento entre pessoas do
mesmo sexo. Na ocasião, Cristina comparou a fala dele aos discursos dos tempos
medievais. Agora, diante do novo papa, a estratégia será outra. A mandatária já
avisou que irá à posse de Francisco, onde encontrará a colega brasileira Dilma
Rousseff. Para a Argentina, de modo geral, a eleição do papa Francisco terá o
mérito de ajudar a população a esquecer um pouco os problemas econômicos,
avalia Dante Sica. “Pela primeira vez, há um fator externo que gera um sinal de
otimismo e esperança”, diz o economista. Na segunda-feira 11, eles já haviam
tido que engolir o referendo promovido pelo governo britânico nas Ilhas
Malvinas para reafirmar o controle do território, alvo de uma guerra em 1982.
Os filhos de Francisco
Fé cega: um peregrino de pés descalços reza na praça São Pedro, em Roma, na terça-feira 12,
quando começou o conclave para a escolha do novo papa |
Quase um quinto da população mundial é católica. Conheça os desafios do novo papa:
A escolha de um papa portenho
garantiu, ainda, combustível para a velha rixa com os brasileiros, uma vez que
o gaúcho dom Odilo Scherer era um dos cotados à sucessão de Bento XVI. “O
Vaticano nomeou Bergoglio como represália contra a saída da Vale da Argentina”,
ironizou o deputado Jorge Altamira, do Partido Obrero. Mas ele não estava
brincando: o clima entre os dois países está pesado. Dois dias antes da eleição
do papa Francisco, a mineradora Vale anunciou a suspensão de um investimento de
pelo menos US$ 5,9 bilhões no projeto Rio Colorado, na província de Mendoza,
para exploração de potássio.
O anúncio escancarou o “risco
Cristina”, que vem desestimulando os investimentos naquele país. Em nota
oficial, a Vale informou que suspendeu a implantação do projeto porque “os
fundamentos econômicos não estão alinhados com o compromisso da Vale.” Em bom português,
a queixa da mineradora é a mesma da população argentina: inflação manipulada,
situação fiscal precária e câmbio fictício. Enquanto os institutos oficiais
apontam uma inflação de 9,9% no ano passado, nas ruas de Buenos Aires os preços
sobem a um ritmo superior a 25% anuais. O câmbio também é outro poço de areia
movediça. Um dólar vale 5 pesos nos bancos e 8 pesos nas casas de câmbio.
A frágil situação fiscal da
Argentina, por sua vez, faz com que o governo recuse pedidos de benefícios
tributários, inclusive da Vale, que já havia investido US$ 2,2 bilhões na Rio
Colorado. Informalmente, executivos da empresa admitiam que o projeto poderia
custar US$ 11 bilhões. Na terça-feira 12, Cristina elevou o tom. Um comunicado
oficial da Presidência “lamentou a decisão unilateral da Vale”. No dia
seguinte, o ministro do Planejamento, Julio de Vido, deixou no ar a
possibilidade de cassar a concessão. “Existe um descumprimento flagrante do
contrato”, disse Vido. A mineradora brasileira, em todo caso, deixou aberta a
possibilidade de retomar o projeto. Na prática, as negociações já seriam dadas
como encerradas.
A Vale não é a única empresa
brasileira a rever seus investimentos na Argentina. A JBS, processadora de
carne bovina, fechou quatro frigoríficos nos últimos anos, ficando apenas com
uma operação na província de Rosário. O plano inicial era montar uma plataforma
de exportações. Medidas intervencionistas, porém, inviabilizaram o projeto. Uma
delas previa que, para cada 2,5 quilos de carne exportados, a JBS teria de
vender um quilo no mercado interno, com preço subsidiado. “Não vamos mais nos
permitir perder dinheiro na Argentina”, disse Wesley Batista, presidente da
companhia, em março de 2012. Para evitar prejuízos, a empresa de logística ALL
também anunciou a venda dos seus ativos na Argentina, incluindo as concessões
de ferrovias.
A quebra de safra e as restrições
a importações reduziram o transporte de carga. Já a multinacional americana
John Deere, que investiu US$ 130 milhões na ampliação de sua fábrica em
Rosario, estaria enfrentando dificuldades para cumprir a exigência de 55% de
conteúdo local. “Os produtores locais não têm qualidade”, diz uma fonte próxima
à empresa. Em Brasília, a decisão da Vale não foi comentada publicamente. Nos
bastidores, porém, o Planalto lamenta a suspensão do projeto, porque ajudaria a
melhorar as relações entre os dois países. Desde o ano passado, o governo de
Cristina havia aumentado as restrições aos produtos brasileiros. Em 2012, o
superávit para o País foi de apenas US$ 1,5 bilhão, um terço do valor de 2011.
O potássio argentino da mina da
Vale poderia trazer algum alívio, pois o produto seria exportado ao Brasil, e
geraria um saldo à Argentina. O presidente da Associação de Comércio Exterior
do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, observa que os argentinos já reduziram
em 18% as importações brasileiras. Enquanto isso, as compras da China caíram
apenas 6%, e as importações dos Estados Unidos aumentaram 9%. “Eles estão
trocando o Brasil por outros fornecedores”, afirma. Esses dados foram
apresentados pelo governo brasileiro numa reunião em Buenos Aires no dia 4, que
seria preparatória para o encontro de Cristina com Dilma, que aconteceria no
dia 7. Foi cancelado por causa da morte do presidente venezuelano Hugo Chávez.
Está sendo remarcado para a
segunda semana de abril. Na agenda, o item mais polêmico é o desejo argentino
de rever o acordo automotivo, que estabeleceu cotas para a exportação de
veículos e autopeças de cada país e, a partir de julho, entrará num regime de
livre comércio. Na avaliação de analistas, o caso da Vale é apenas a ponta mais
visível de um movimento bem mais amplo. Paira uma dúvida, por exemplo, sobre as
três empreiteiras brasileiras que trabalhavam com a mineradora na Rio Colorado.
A Odebrecht, em conjunto com a ítalo-argentina Techint, era a responsável pela
mina; a Camargo Corrêa foi contratada para as obras em 790 quilômetros de
ferrovia; e a Andrade Gutierrez, para o porto em Bahia Blanca, ponto de
exportação do produto.
O consultor Thiago de Aragão, da
Arko Advice, de Brasília, lembra que as empresas também estão preocupadas com
um possível default técnico. O calote acontecerá se o país não vier a
renegociar sua dívida com uma parcela de credores internacionais que não
aceitaram o valor oferecido pelos bônus argentinos e cobram a dívida na Justiça
americana. “O país não depende de fatores econômicos, mas de orgulho e emoção”,
diz Aragão. Pois para sair dessa encruzilhada, Cristina terá de apelar para seu
lado mais racional, até para contar com o novo papa como aliado. Com viagem marcada
ao Brasil, para a Jornada Mundial da Juventude, em julho, o papa Francisco deve
fortalecer uma corrente de fé para solucionar os problemas que assombram a
Argentina, e por tabela, as empresas brasileiras.