"Tentam me calar porque divulgo a
Cuba real"
A blogueira cubana Yoani Sánchez
descreve um sistema de saúde à beira do colapso e uma economia na qual, para
sobreviver, é preciso roubar do estado
Na edição desta semana, VEJA
revela:
Uma moça perigosa
A dissidente cubana Yoani Sánchez
encontrou no Brasil uma raridade, jovens manipulados para defender uma
ditadura. Viu patetas fantasiados de Che Guevara tentando, aos berros e à
força, impedi-la de falar. Sua reação foi uma aula de política. Ela pouco se
importou com o conteúdo do alarido. Aprendeu a valorizar o exercício da
liberdade de protestar, mesmo quando o alvo é ela própria. Sua simplicidade
assusta os adeptos das tiranias.
Branca Nunes e Duda Teixeira - de VEJA
“Solidariedade, pluralidade e,
principalmente, o desejo de voltar”. Apesar das manifestações hostis de um
grupo de simpatizantes da ditadura dos irmãos Castro que enfrentou na passagem
pelo Brasil, a frase resume a lembrança que Yoani Sánchez levará do país. O
recado aos baderneiros ligados a partidos de esquerda é igualmente conciso: ela
sugere que morem em Cuba para conhecer a “realidade de um mercado racionado,
dualidade monetária, falta de liberdade e impossibilidade de se manifestar na
rua”.
Com os intermináveis cabelos
castanhos presos num rabo de cavalo, saboreando uma pastilha para aliviar a
rouquidão e com a expressão serena de quem efetivamente acredita no que diz, a
jornalista cubana relatou nesta sexta-feira à reportagem de VEJA um pouco do
cotidiano dos moradores da ilha no Caribe. Leia trechos da entrevista.
Como a senhora viu as
manifestações hostis dos últimos dias? Por um lado me sinto feliz por estar num
país onde existe liberdade democrática e pluralidade. O problema é quando essas
manifestações impedem e boicotam algo tão pacífico quanto a apresentação de um documentário
ou uma sessão de autógrafos. Acho contraditório usar um espaço democrático para
impedir que alguém se expresse livremente.
A senhora ficou amedrontada? Não,
porque conheço esses métodos do meu país: a coação e a difamação. Infelizmente,
nos últimos anos vivi situações semelhantes em Havana e outras cidades.
Eles conhecem a realidade cubana?
Lamentavelmente, a maioria não conhece meu país, minha história ou meus textos.
Eles acreditam numa Cuba estereotipada, uma ilha de esperança, com liberdade
para todos. Cuba não vive um comunismo, mas um capitalismo de estado.
Recomendaria que cada um deles morasse um tempo em Cuba para viver na pele a
realidade de um mercado racionado, dualidade monetária, falta de liberdade,
impossibilidade de se manifestar na rua. Depois desse tempo, duvido que
continuem a defender o governo cubano. Tentam me calar porque divulgo uma Cuba
menos parecida com o discurso político e mais parecida com a rua. Uma Cuba
real.
Que Cuba é essa? Uma Cuba linda,
mas difícil. É importante diferenciar Cuba de um partido, de uma ideologia, de
um homem. Ela é muito mais do que isso. É um país onde as pessoas precisam
esconder suas opiniões com medo de represálias, onde muitos jovens querem
emigrar por falta de expectativa, onde o estado tenta controlar todos os
detalhes da vida. Onde colocar um prato de comida em cima da mesa significa
submergir-se diariamente à ilegalidade para conseguir dinheiro.
Muitas pessoas de vários países
costumam elogiar o sistema de saúde e o sistema educacional de Cuba. Esses
elogios são pertinentes? Nos anos 70 e 80, Cuba viveu o florescimento de toda a
estrutura de saúde e educação. Foram construídas escolas e postos de saúde em
toda parte graças aos subsídios soviéticos. Quando a União Soviética caiu, Cuba
teve que voltar à realidade econômica. Os professores imigraram por causa dos
baixos salários, a qualidade diminuiu e a doutrina aumentou. Exatamente como na
área da saúde. Hoje, quando um cubano vai a um hospital, leva um presente para
o médico. É um acordo informal para que o atendam bem e rápido. Levam também
desinfetante, agulha, algodão, linha para as suturas. O governo usa a
existência de um sistema gratuito de saúde e educação para emudecer os
críticos, silenciar a população. Não passo todos os dias doente ou aprendendo,
quero ler outros jornais, viajar livremente, eleger meu presidente, poder me
manifestar, protestar.
Como funciona o sistema de
aposentadoria em Cuba? Esse é um dos setores mais pobres. Um aposentado ganha
cerca de 15 dólares conversíveis por mês. Como a maioria dos cubanos não vive
do salário, mas do que pode roubar do estado dentro do local de trabalho,
quando se aposenta ele perde essa fonte de renda. Em Havana é possível ver
muitos velhos vendendo cigarros nas ruas.
Que tipo de racionamento existe
em Cuba e como ele funciona? Cada cubano tem direito a uma cota mensal de
alimento com preços subvencionados pelo estado. Estudos dizem é possível se
alimentar razoavelmente bem por duas semanas com essa cota. Nela existe arroz,
açúcar – que por sinal é brasileiro –, um pouco de café, azeite e, às vezes,
frango. Para sobreviver a outra metade do mês os cubanos precisam ter os pesos
conversíveis. O salário médio na ilha é de 20 dólares. Um litro de leite custa
1,80 dólares. Por isso, as pessoas apelam para a ilegalidade: roubam do estado
e vendem no mercado negro, prostituem-se, exercem atividades ilegais, como
dirigir taxis ou vender produtos para os turistas. Graças a isso e às remessas
enviadas pelos cubanos exilados é possível sobreviver. Uma revolução que
rechaçou esses exilados agora depende deles.
A senhora disse que os gritos de
ordem dos manifestantes brasileiros já não se escutam mais em Cuba. Qual lhe
surpreendeu mais? “Cuba sim, ianques não”, por exemplo. É uma expressão fora de
moda. Em Cuba não usamos mais a palavra ianque para os americanos. Ela é usada
apenas nos slogans políticos. Falamos yuma, que não pejorativo. Ao contrário,
mostra um certo encanto em relação a eles. A propaganda oficial, de ataques aos
Estados Unidos e ao imperialismo, criou um sentimento contrário ao esperado. A
maioria dos jovens hoje é fascinada pelos americanos. Até acho ruim esse
enaltecimento por outro país, mas é uma realidade.
O que os cubanos nascidos depois
da revolução acham de figuras como Fidel Castro e Fulgêncio Batista? Nasci em
1975, quando tudo já estava burocraticamente organizado. Na escola,
apresentavam Fidel como o pai da pátria. Era ele quem decidia quantas casas
seriam construídas, o que iríamos vestir. Na juventude, Fidel passou a ser uma
figura distante. Diferente dos nossos pais, que viveram uma fascinação pela
figura de Fidel, minha geração é mais crítica. O Fulgêncio Batista era o
ditador anterior. A revolução tirou um ditador do poder e se converteu em uma
ditadura.
Yoani Sánchez: uma mulher contra uma ditadura consolidada em 50 anos! |
As gerações mais antigas
continuam fiéis à revolução? Existem os que creem realmente na revolução, sem
máscaras nem oportunismo, um pequeno grupo. Os que já não creem, mas não querem
aceitar que se equivocaram, porque entregaram a ela seus melhores anos, e
aqueles que deixaram de acreditar no sistema e se transformaram em pessoas
críticas.
Em 2007, o governo brasileiro
deportou os boxeadores cubanos Guilhermo Rigondeaux e Erislandy Lara, que
tentavam o exílio na Alemanha. Qual sua opinião sobre isso? O governo
brasileiro teve um triste papel neste caso, de cumplicidade. Quando os atletas
retornaram, o governo cubano fez um linchamento público na imprensa oficial,
com vários insultos. Fidel Castro falou na televisão que um deles foi visto com
uma prostituta na praia. Os filhos e a mulher desse homem foram expostos a
isso. Foi um episódio bastante lamentável.
Por que a ditadura cubana ainda
tolera suas críticas? Penso que a visibilidade que alcancei me protege. Sou
vigiada constantemente, meu telefone é grampeado e existe uma série de
mecanismos e estratégias para matar a minha imagem. Se não podem matar a
pessoa, matam sua imagem.
A senhora é frequentemente
acusada de receber dinheiro de governos contrários a Cuba para manter seu blog.
Qual a origem desses rumores? Faz parte da estratégia de difamação: não
discutir as ideias, mas a pessoa. Para ter um blog é preciso muito pouco dinheiro.
O meu está num software livre, o wordpress, e fica hospedado num servidor da
Alemanha que custa 36 euros por ano. Em 2006, um amigo alemão pagou vários anos
a esse servidor. Quanto à conexão, aprendi alguns truques. Por exemplo, vou a
um hotel e compro um cartão de conexão que custa 6 dólares a hora. Como preparo
quatro ou cinco textos em casa, programo para que sejam publicados em dias
diferentes. Com esse método, consigo me conectar mais de cinco vezes com um
único cartão. No twitter, publico via mensagem de texto.
Que lembranças levará do Brasil?
Muita solidariedade, pluralidade e, principalmente, o desejo de voltar. O pão
de queijo também me encantou. Vou levar uma mala cheia deles para Cuba.