O ocaso do coronel
O usineiro e deputado João Lyra
já foi considerado o parlamentar mais rico do Congresso. Agora, mergulhado em
dívidas que somam R$ 2 bilhões, ele experimenta o declínio
Izabelle Torres – da revista
ISTOÉ
BANCARROTA Depois de dar calotes em série em bancos privados, João Lyra teve a falência de seu conglomerado decretada pela Justiça (foto: Orlando Brito) |
Personagem que ilustrou como
poucos a história de coronelismo do Nordeste brasileiro, o deputado federal
João Lyra (PSD-AL), 82 anos, vive sua decadência empresarial e política. Dono
de um império que inclui imensas extensões de terra, imóveis de luxo, cinco
usinas de cana-de-açúcar, empresas de comunicação, táxi aéreo e até uma fábrica
de adubos, um dos usineiros mais importantes do País está afundado em dívidas e
dá adeus ao título de parlamentar mais rico da Câmara dos Deputados. Antes dono
de um prestígio inabalável, que lhe rendeu dois mandatos em Brasília e poder de
influência na política de seu Estado natal, Alagoas, Lyra vive hoje sua ruína
sob o fantasma da falência e do ostracismo. Para traçar o caminho da decadência
do coronel, ISTOÉ percorreu a sede das empresas do parlamentar. Deparou-se com
portas lacradas e seguranças armados, ouviu funcionários demitidos, advogados e
representantes do Judiciário ligados ao processo de recuperação judicial do
Grupo João Lyra.
Em valores atualizados, o
deputado deve R$ 2 bilhões, dez vezes o patrimônio pessoal declarado por ele à
Justiça Eleitoral há dois anos. Em setembro, o juiz Marcelo Tadeu decretou a
falência de seu conglomerado, entregando o comando de suas empresas a
interventores. “Não dá para fechar os olhos para os débitos e essa situação
vinha se arrastando há anos”, disse o juiz, que alega ter sofrido ameaças de
morte por conta de sua atuação em desfavor de João Lyra. Há apenas dois meses,
cinco auditores fazem uma devassa nas contas das usinas. As primeiras análises
mostram que havia recursos em caixa para cumprir as negociações judiciais dos
débitos, apesar dos argumentos de crise no setor sucroalcooleiro e das
enchentes que atingiram Alagoas nos últimos anos. “A situação parece bem
diferente do que era passado oficialmente nas negociações. Eles vinham dando
calote em todo mundo deliberadamente”, resume um dos credores envolvidos no
processo. Na ação de falência do Grupo João Lyra, que corre em sigilo, seus
advogados não negam os débitos. Entretanto, dizem que não concordam com os
critérios da cobrança. Também apelam para a importância do grupo na geração de
empregos, especialmente em Alagoas e Minas Gerais. São cerca de seis mil
funcionários diretos.
A história da queda de Lyra
começa em 2006, quando o atual deputado gastou parte da sua fortuna em uma
campanha desesperada pelo comando do governo de Alagoas. Documentos obtidos com
exclusividade por ISTOÉ mostram que desde então as dívidas do usineiro
começavam a se acumular e as cobranças judiciais se amontoavam no departamento
jurídico do grupo. Na época, Lyra ainda gozava de prestígio de coronel e,
apesar de ter perdido a eleição e cerca de R$ 60 milhões que gastou com a
campanha, conseguiu usar sua influência para protelar as ações de cobranças, em
vez de negociá-las.
Para continuar mantendo seu alto
padrão de vida, e as empresas em funcionamento, Lyra iniciou uma estratégia de
calotes em série contra bancos privados, tanto estrangeiros como nacionais, e
também entidades públicas. A cada ano e período de entressafra da
cana-de-açúcar, seu grupo entrava com pedidos de empréstimos em diferentes
bancos. Conseguiu abocanhar quase R$ 1 bilhão de pelo menos três instituições
estrangeiras (um banco francês, um belga e um inglês), além do Banco do
Nordeste, Bradesco e até do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social). Mas o usineiro, mesmo com o lucro da safra, deixou de pagar os
empréstimos. Quando pressionado, renegociava a dívida. Fez isso ao menos seis
vezes, segundo o processo de falência do Grupo João Lyra, obtido pela
reportagem. Em 2010, a situação chegou ao limite. Os bancos estrangeiros,
credores rurais e funcionários com salários atrasados decidiram cobrar a dívida
de Lyra.
O calote bilionário se soma à
lista de abusos alimentados pela impunidade. A influência de Lyra no Judiciário
alagoano é conhecida há tempos. Nos anos 1990, ele conseguiu se livrar de
acusações de assassinatos, apesar dos depoimentos e indícios contundentes de
sua participação nos crimes. Em 1991, Lyra foi acusado pelo Ministério Público
de mandar matar o amante da ex-esposa. Cinco anos depois, o parlamentar foi
apontado como o mandante do assassinato do fiscal de renda Sílvio Vianna, que o
cobrava por impostos devidos à União. O deputado, por meio de sua rede de
influência, conseguiu engavetar os processos, que acabaram prescrevendo depois
que ele completou 70 anos.
A última demonstração de poder
veio das mãos do amigo e presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas,
Sebastião Costa Filho, que, durante um plantão de domingo, suspendeu o processo
de falência de Lyra. Alegou que a decisão do juiz Marcelo Tadeu não foi
imparcial. Tadeu é antigo desafeto do deputado. Mas a decisão de Costa Filho
não teve efeito prático. O caso já está no Superior Tribunal de Justiça, por
conta de recurso do próprio Lyra. ISTOÉ ouviu dois ministros do STJ. Apesar de
ainda não conhecerem a fundo o processo, ambos contaram que em casos
semelhantes a corte já decidiu que o dinheiro do dono das empresas deveria ser
usado para quitar as dívidas.
A crise nos negócios deixou o
parlamentar com a saúde debilitada. A convivência conflituosa com a família tem
agravado as doenças. Pai de quatro filhos, entre eles Tereza Collor, a musa do
impeachment, o deputado não fez sucessores. Não treinou herdeiros naturais para
cuidar dos seus negócios e a família não se encontra com frequência. Nas
últimas décadas, suas companhias são assessores muito bem pagos, seguranças e,
recentemente, a nova esposa, quase 30 anos mais jovem. Voa de jatinho
particular entre Brasília e Maceió, e de helicóptero dentro da cidade.
Ao transitar nos corredores do
Congresso, o parlamentar mantém-se distante das discussões e das rodinhas de
políticos. Sempre circula pelas laterais, evitando o centro do plenário, onde
as televisões captam imagens em tempo real e os deputados se digladiam na
disputa por microfones. Isso quando ele aparece na Casa. Além de ser o mais
faltoso, tendo comparecido a menos de 30% das sessões de 2012, o deputado
apresentou este ano apenas quatro projetos. Três eram simples sugestões a
ministérios, e outro foi elaborado sob medida para beneficiar a si mesmo. Pediu
à Secretaria de Patrimônio da União a redução do laudêmio e da taxa de ocupação
cobrados de quem mora em áreas pertencentes à Marinha. Ocorre que Lyra vive em
uma luxuosa cobertura à beira-mar em Maceió e paga cerca de 3% do valor do
imóvel à União. Na justificativa do projeto, o deputado alega que as taxas são
abusivas e que também é preciso rever a dívida das famílias que acumulam
débitos de laudêmio. Ele não paga a taxa há cinco anos. Pelo visto, o coronel
continua o mesmo. Mas a possibilidade de que finalmente seja alcançado pela
Justiça mostra que os tempos mudaram.