Corrupção: Uma CPI para investigar a farra entre o público e
o privado. Comissão criada para mapear o crescimento da construtora
Delta e seus negócios nebulosos com políticos em todo o país tem a chance de
fazer a maior faxina desde o escândalo do mensalão
Daniel Pereira, Otávio Cabral e Rodrigo Rangel - do portal
de VEJA
A CPI para investigar as relações do contraventor Carlos
Augusto Ramos, o Carlos Cachoeira, com políticos e empresas que têm contratos
com a administração pública saiu do papel em alta velocidade. A gravidade dos
fatos levantados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público — o pagamento
de propina a autoridades, a troca de favores entre a máfia do jogo e
parlamentares e a assinatura de contratos públicos azeitados à base de tráfico
de influência — produziu um fato raríssimo: a instalação da CPI contou com o
apoio de governistas e oposicionistas. O Congresso deu mostras de disposição
para fiscalizar a aplicação dos recursos públicos, uma de suas mais nobres
missões. Se nasceu sem dores, a CPI começou a caminhar com dificuldades. Aprovado
na quarta-feira passada, o plano de trabalho da comissão apenas tangencia o
epicentro das irregularidades apontadas pelos policiais federais e pelos
procuradores. A CPI decidiu ouvir os coadjuvantes das malfeitorias, mas, por
enquanto, vacila em chamar para depor deputados e governadores suspeitos de
manter relações promíscuas com Cachoeira e a empreiteira Delta, um colosso da
construção civil com obras contratadas por governos do PT, do PSDB e do PMDB.
A desenvoltura multipartidária da Delta explica o começo
claudicante da CPI que nasceu com o potencial de fazer uma faxina pública como
não se via desde que o escândalo do mensalão foi destrinchado, em 2005, com o
indiciamento de cerca de uma centena de pessoas. O deputado petista Odair
Cunha, relator da CPI, tentou limitar geograficamente as investigações sobre a
Delta e suas obras no Centro-Oeste. O ex-diretor da empreiteira para aquela
região, Cláudio Abreu, está preso. O plenário da comissão, no entanto, arrancou
do relator a promessa de investigar a atuação da Delta em todo o território
nacional. Está pronto para votação o requerimento de convocação do dono da
Delta, Fernando Cavendish, e de diretores regionais da empresa.
"A base governista foi derrotada. Vamos investigar os
aditivos nos contratos da Delta com o Dnit, principalmente aqueles assinados em
períodos eleitorais", avisa o deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS). Quando
isso será feito — e se realmente será feito, devido às ligações também
multipartidárias de Cavendish — ainda não está definido. A comissão ouvirá
neste mês os depoimentos de delegados e procuradores envolvidos na investigação,
seguidos de Cachoeira e seus comparsas presos. O único político com depoimento
marcado é o senador goiano Demóstenes Torres, o, por enquanto, mais notório
membro do esquema de Cachoeira. O Senado abriu um processo por quebra de decoro
contra ele, que pode comparecer à comissão já na condição de parlamentar
cassado (leia a reportagem aqui). Ou seja: tem-se definida apenas a primeira
fase da investigação, que tratará de temas e personagens cujos feitos e
malfeitos são de conhecimento público. Nada além disso. Segundo o presidente da
CPI, senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), a segunda fase aumentará a temperatura
dos trabalhos. Nela, será travada a "grande batalha" pela convocação
das autoridades de maior calibre. "O vazamento das informações impede a
costura de acordões para abafar a investigação ou poupar autoridades", diz
Vital.
Além de Fernando Cavendish, os governadores Sérgio Cabral
(PMDB-RJ), Marconi Perillo (PSDB-GO) e Agnelo Queiroz (PT-DF) e pelo menos
cinco deputados federais ainda não foram convocados para prestar
esclarecimentos. Sobre muitos deles há uma fartura de indícios de envolvimento
com o esquema. Por enquanto, a CPI vai se concentrar no que já foi revelado.
Mas não há garantia de que o universo da apuração fique restrito. O plano de
trabalho de Odair Cunha deixa brechas para investir sobre qualquer tema:
políticos, procuradores, empreiteiras e até a imprensa. Não está fechada,
portanto, a porta aberta pelo PT para desqualificar o procurador-geral da
República, Roberto Gurgel, defensor da condenação dos mensaleiros no Supremo
Tribunal Federal, e a parte da imprensa que, segundo o ex-presidente Lula,
ajudou a montar a "farsa do mensalão". "Todas as pessoas que
foram corrompidas ou cooptadas pela organização criminosa têm de ser investigadas.
Não haverá blindagem nem proteção a quem quer que seja", disse Odair.
Hoje, há pelo menos duas ofensivas em marcha para pôr
cabresto na CPI. A presidente Dilma Rousseff não quer que a comissão seja usada
com os fins estritamente políticos planejados pela falconaria petista. Ela tem
dito que teme que a comissão domine a agenda política, paralise o Congresso e
prejudique ações do governo. Além disso, afirma não ter receio de que as
investigações atinjam seu governo e lembra que, se atingirem, não se furtará a
demitir os envolvidos com culpa provada — aliás, como vem agindo desde o início
do mandato, o que é um dos motivos de sua expressiva aprovação popular.
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A Delta tem contratos com governos de todas as cores.
Algumas dessas relações já foram reveladas, o que deixou na berlinda políticos
de primeira grandeza do PT, PMDB, PSDB e DEM. O campo já era fértil para um
acordo velado, que vinha sendo costurado às sombras. Mas a entrada de Sérgio
Cabral no palco das investigações tornou as negociações para abafar o escândalo
político mais explícitas. Há dez dias, o blog do deputado Anthony Garotinho
(PR-RJ), adversário político de Cabral, publica fotos e vídeos de viagens do
governador, sua mulher e seus secretários mais próximos com Fernando Cavendish
a Paris e Mônaco. Em hotéis e restaurantes de luxo, o grupo comemora
aniversários, noivados, casamentos e conquistas políticas e comerciais. Cabral,
considerado um estranho no ninho do PMDB, teve de procurar a cúpula do partido
na semana passada para pedir socorro. Em conversas com o presidente do Senado,
José Sarney, e com os líderes Renan Calheiros e Henrique Eduardo Alves, ele
disse não estar preocupado com uma investigação policial, pois os vídeos não
comprovam irregularidades. Mas deixou claro que teme o estrago político que uma
exibição desse material, seguida de um depoimento à CPI, possa provocar.
"Preciso da ajuda do partido. Se eu tiver de depor na CPI, não será bom
para ninguém", ponderou Cabral. A cúpula do PMDB aproveitou o pedido do
governador para tentar negociar um armistício com o PT e o PSDB.
De olho no Mensalão - Petistas incentivaram a convocação do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, apenas para tentar constrangê-lo (foto: Sergio Lima) |
Nas conversas, já surgiu até uma manobra jurídica para
empastelar as investigações. A tese que será levantada é a de que uma CPI do
Congresso não tem poder legal para investigar governadores. Os foros para esse
tipo de apuração seriam as assembleias legislativas, não por acaso controladas
pelos governadores. É pouco provável que uma argumentação tão frágil prospere
se a CPI tiver mesmo disposição de elucidar os fatos denunciados. Muito
provavelmente, o fator de diminuição do escopo da CPI virá não da Justiça, mas
da política. O senador José Sarney já recomendou ao PT que "controle os
radicais", argumentando que "ninguém tem a ganhar se essa CPI começar
a sair do controle". O recado tem endereço certo: a turma que vê na CPI
uma chance única de desmoralizar o julgamento do mensalão. A primeira ofensiva
desse grupo foi dada na sessão da semana passada, com a tentativa de convocação
do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, para depor na CPI. Sob o
argumento de que ele deve explicar por que retardou a abertura de uma
investigação contra Demóstenes Torres, os petistas querem colocá-lo no banco
dos réus da CPI para tentar desmoralizá-lo. A imprensa é outro alvo que, na
estratégia dos radicais, precisa sair chamuscada da CPI. O presidente do PT,
Rui Falcão, deixou mais uma vez clara essa convicção na sexta-feira quando, em
discurso feito em São Paulo, voltou a defender o projeto de regulamentação dos
meios de comunicação, um eufemismo para a tentativa de controlar a imprensa
idealizado pelo ex-ministro da Comunicação Social Franklin Martins. Para
Falcão, "a mídia é um poder que está conjugado ao sistema bancário e
financeiro" e "produz matérias e comentários não para polarizar o
país, mas para atacar o PT e nossas lideranças".
O cenário inicial da CPI do Cachoeira é muito semelhante ao
da CPI dos Correios, instalada em 2005 a partir da gravação na qual Maurício
Marinho, diretor da estatal, cobrava 3 000 reais de propina, o que deu origem à
descoberta de novos fatos envolvendo dinheiro público e compra de apoios pelo
governo. Aquela CPI nasceu com o intuito de blindar os aliados do governo e era
controlada por parlamentares fiéis ao Palácio do Planalto. Exatamente como
agora. Também tinha o mesmo prazo de atuação: 180 dias. Mas, logo no início dos
trabalhos, depoimentos bombásticos, como o do deputado Roberto Jefferson e o do
marqueteiro Duda Mendonça, incendiaram a comissão e provocaram uma indignação
popular que impediu qualquer tipo de acordo. A atual comissão também tem fios
desencapados e personagens que podem contar muita coisa. Cachoeira e Cavendish,
por exemplo. Com uma matéria-prima mais modesta do que a produzida pelas
operações da PF, a CPI dos Correios produziu a denúncia do mensalão, a cassação
de José Dirceu e Roberto Jefferson e a renúncia de meia dúzia de políticos,
além de tisnar a imagem imaculada de virgem ética do PT. A CPI do Cachoeira,
com seu farto material, tem potencial ainda maior. Basta que não se torne refém
de arranjos políticos.