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Lena morreu!

Leia este artigo, por favor!

Não se trata de artigo pedindo voto para Marina Silva. Não é isso! O professor Carlos Melo publica em seu blog no Jornal O Estado de São Paulo uma minuciosa análise sobre o que está ocorrendo nestas eleições. É uma aula de visão política. No país dos meus sonhos, todos os eleitores deveriam fazer uma análise desta antes de votar. Sim, eu sei que é uma utopia. Vale a pena ler com atenção.

A reação à reação de Dilma e cenário do dia seguinte

                  CARLOS MELO – do Estadão
Carlos Melo
Leitores de Blog têm pressa e este artigo é um tanto comprido. Acontece que o quadro é complexo e exige detalhes e minúcias. O crescimento de Dilma Rousseff desperta euforia nos aliados e mau humor em adversários. É importante o processo e as implicações disso. Igualmente necessário entender o que vem a ser essa dinâmica chamada “mercado”. Esclarecimento, eis a pretensão e a ilusão deste artigo.
Tão precipitado quanto quem, há um mês, afirmava que Marina Silva venceria a eleição, é quem, agora, feliz ou desolado, garante que Dilma Rousseff pode desde já vestir, mais uma vez, a faixa presidencial. Eleição é coisa mais complicada; se define no dia a dia; é sensível aos fatos e àquilo que o engenho humano – seja no marketing ou na política — souber criar ao longo do processo. Ninguém poderá assegurar o que o futuro nos reserva. Então, sem bolas de cristal, o importante é compreender o que ocorreu, o que se passa e quais cenários tendem a se delinear à nossa frente.
Dilma pode ganhar; desde sempre pôde: tem a centralidade da presidência e — para o bem e para o mal — a especial atenção da mídia; o cargo, a máquina, a iniciativa; políticas públicas eficientes, uma coligação poderosa, tempo de TV, Lula e um staff experiente e capaz de utilizar os recursos de que dispõe, partindo do princípio de que “em política, o feio é perder”. Pode também contar com extraordinário batalhão de apoiadores aguerridos, dispostos a intervir energicamente em sua defesa, nas ruas, na rede, em todo lugar; seu piso é, desde sempre, alto. Sua força não deveria ser surpresa.
Mas se há bônus, há também o ônus de um governo incapaz de produzir notícias boas desde a abertura da Copa do Mundo, em junho. A luta no front econômico tem sido muito difícil e de resultados escassos — o país não cresce, a inflação assombra agentes econômicos; há inegável crise de expectativas. Na política, escândalos que sempre abraçam seus aliados e também pressionam. Como candidata, Dilma mostra-se menos hábil do que há 4 anos — em 2010, favorecida pelos 7,5% de crescimento, sentia-se mais segura; deu um baile eleitoral em José Serra.
Evidente que, há um mês, a tarefa mais importante para Dilma era mesmo barrar Marina; explorar sua fragilidade e expor suas contradições. Não teve refresco; tempo de televisão tem, afinal, serventia. Dilma cresceu, Marina encolheu — ainda que não a ponto de se inviabilizar. O segundo turno está em aberto, mas neste momento é a presidente quem tem o protagonismo e o favoritismo retomados de Marina.
Dilma é forte, mas não pode baixar a guarda, expondo o queixo-de-vidro; ganchos bem aplicados podem fazer a diferença. A igualdade no tempo de TV, o alinhamento dos adversários, além do foco da mídia — tendencialmente mais agressivo e centrado em Dilma –, tendem a colocar em risco a reeleição que hoje muitos, ao contrário de anteontem, dão como certa.
Mas, não me parece que sejam apenas esses pontos que tirarão o sono do PT e de sua tropa. Justo e até razoável é considerar que será a questão econômica também estará no centro do debate, no eventual segundo turno quem quer que seja o adversário de Dilma. Cabe, então, explorar as implicações do discurso petista, as decorrências da radicalização a que Dilma foi levada para combater Marina e seus efeitos na dinâmica do mercado; a consolidação de expectativas e a construção de cenários negativos que estarão no ar nos próximos dias, talvez nos próximos anos.
Em 2014, a eleição se desenrola num clima dramático – a começar pela morte de  Eduardo Campos e pelo caminho que campanha de Dilma, a partir da entrada de Marina Silva em cena, teve que trilhar. Para combater o que parecia ser um fenômeno, Dilma se lançou de modo agressivo contra a adversária; deu certo momentaneamente, mas, como tudo, tem seu preço.
O problema do excesso de vontade é a pouca atenção que se dá às consequências. Eleitores passam, mas a política segue; haverá sempre um governo com problemas esperando equação. A eleição deixa saldo nos compromissos assumidos e, inevitável, em portas fechadas pela brutalidade das disputas. Diz a experiência que não se deve queimar pontes e obstruir caminhos de volta. O dia seguinte é incerto, depende menos da vontade que das circunstâncias. Governantes são sujeitos à articulação com o mundo político e econômico que os rodeia. E, inadvertidamente até, Dilma tem queimado suas pontes.
A ameaça à reeleição levou Dilma e sua tropa à radicalização; acusar Marina de tudo: mancomunada com banqueiros, inimiga do Pré-Sal, contrária ao Bolsa Família (influenciadas pelo clima, na escola do meu filho, as crianças diziam que Marina acabaria “com os salgadinhos”). Ok, a propaganda agressiva faz parte. Mas cria uma espécie de Path Dependence: escolhas anteriores levam à novas escolhas no presente e, de certo modo, comprometem escolhas no futuro. Dilma jogou Marina para a direita, demonizando as propostas da adversária. Todavia, nem tudo o que Marina diz pode ser descartado. O país precisa de ajustes.
As condições econômicas e políticas de um eventual segundo mandato exigirão mudanças mais profundas que o governo admite — na politica econômica e na política em geral. Inevitável que sejam impopulares e atinjam interesses da base social e aliada de Dilma. Todavia, este cenário tem sido bloqueado por Dilma e suas alternativas vetadas politicamente pelo discurso da campanha e pelos compromissos assumidos por uma retórica de riscos pouco calculados. Pontes  queimadas, caminhos tortos… Que Dilma não se veja perdida no centro do labirinto, onde mora o Minotauro. Não haverá Teseu capaz de evitar que seja devorada.
Há certa tendência em acreditar em teorias conspiratórias; em tudo haveria uma ação orquestrada: aviões que caem, escândalos que se revelam, governos que não se sustentam seriam obra de grupos e forças ocultas. Mas, quase nunca é assim; quase sempre os fatos se sucedem em virtude de escolhas que se articulam, despertando expectativas e reações à essas expectativas. Tanto o “mercado” como a “política” funcionam independentes da vontade individual dos atores.
O mercado — ou, mais amplamente os agentes econômicos — não pode ser entendido como uma pessoa ou grupo definido e organizado de pessoas em assembleia permanente. Antes, são centenas de milhares de indivíduos que agem de acordo com interesses concretos. Não há comitê central que o articule, embora, é claro, seus agentes se conheçam, se frequentem e compartilhem da mesma lógica. Em qualquer lugar do mundo é assim.
Tão legítimo quanto o trabalhador que defende seus direitos é o pobre que se preocupa com a permanência de política pública que o favoreça; e tão natural quanto é o poupador que protege seus recursos ou o investidor atento aos risco de portfólio. Numa democracia, grupos de interesse agem e reagem naturalmente e, nos limites da lei, isto será legítimo. Cabe aos governos conduzir o processo, antecipando-se e persuadindo vontades. No limite de suas forças, deter processos ruinosos.
A esquerdização da campanha de Dilma desperta expectativas entre agentes econômicos; medos de toda ordem: inflação, intervenção, aumento de impostos, incapacidade de conduzir o desenvolvimento; o fantasma exagerado — infundado ou não — do que chamam  “argentinização do Brasil”.  Mal comparando, trata-se do mesmo processo de medo que o programa de Dilma desperta quando insinua o fim de empregos e de políticas de distribuição de renda; apenas atinge um número menor de pessoas, mas o mecanismo é semelhante.
O mundo funciona em torno de expectativas: o garoto penteia o cabelo na expectativa de encontrar a mulher de sua vida; a mulher recorre ao batom, à espera do príncipe. É assim. Os agentes econômicos – não importa o tamanho — se antecipam, se protegem diante  de expectativas do que acreditam ou temem. Às vezes, esse comportamento ajuda a construir a realidade que se teme, de um odo perverso.
Quando, por exemplo, migram para o dólar, com medo da inflação, os agentes econômicos comprometem o combate à inflação, o consumo e o emprego; elevam custos e desorganizam ainda mais a economia. Fugindo do “estouro da manada” transformam-se em igualmente animais desembestados e agravam o processo. No jargão do meio, constroem “profecias autorrealizáveis”, consolidadas menos pelo desejo dos protagonistas do que pela incapacidade de conter a reação ao medo, lá atrás, despertado. Trata-se de uma dinâmica social vinculada ao tipo de credibilidade que um governo desperta.
Governos precisam, portanto, conquistar a confiança dos indivíduos: um sujeito que nunca bebeu possui maior credibilidade quanto ao risco de alcoolismo do que aquele que já tomou um porre; o que o fez apenas uma vez despertará pouca desconfiança; o que o faz com frequência talvez a perca e não consiga reconquistá-la jamais. O esforço e custos para fazê-lo serão muito maiores e, às vezes, inúteis. Igualmente, na vida econômica e na política: governos criam reputação e despertam expectativas, que levam à ações que colocam à prova suas reputações.
Esta questão está colocada para Dilma. FHC e Lula construíram reputações capazes de conquistar credibilidade. Já Dilma não foi feliz em fazê-lo. Não cabe aqui remontar as causas – abalos internacionais ou escolhas domésticas –, mas o fato é que agentes econômicos questionam a capacidade e a disposição de a presidente e seu governo se reinventarem. O confronto travado com Marina realça essa situação. Vista como avessa a ajustes, Dilma desperta a crença de que “dobrará a aposta” num processo que não apenas não tem dado resultados, como também agrava a situação do país — pelo menos de acordo com os índices econômicos.
Justo ou injusto, não interessa. Pode-se mudar a realidade, mas não substituí-la. No jargão financeiro, a avaliação negativa do segundo mandato de Dilma está sendo “precificada”, definindo o comportamento futuro da economia. Foi uma espécie de cilada que Dilma armou para si própria. Com o aumento das chances de sua eventual eleição, os agentes econômicos tendem a se antecipar; pelo menos num primeiro momento, a economia pressionará de modo mais agudo.
Neste quadro, o governo precisará ainda mais do Congresso Nacional — seja para aprovar medidas, seja se proteger dos dias difíceis no front econômico; seja para evitar que escândalos e delações atinjam o governo. No Legislativo, a curva dos preços de sua proteção é ascendente; os partidos percebem isso; sobretudo, o PMDB sabe disto. As condições fiscais para atender novas demandas e fechar novos pactos não são, no entanto, favoráveis e chegam próximo do esgotamento, o que aprofunda o quadro. Dilma pode ter-se metido num círculo vicioso com o qual setores do próprio PT já se preocupam — está nos jornais. Trata-se de uma questão apenas enganosamente simples: o que pode ser feito para garantir a reeleição e, ao mesmo tempo, deter esse processo? Ninguém ainda é capaz de responder.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.