TRISTE REALIDADE No município de Jardim, no Ceará, fazendeiro perdeu 300 cabeças de gado em razão da seca |
Em reportagem desta semana, a
revista ISTOÉ revela com detalhes o que se acostumou chamar de “indústria da
seca”. Os elementos são os mesmos desde Dom João VI: incompetência e deslavada
corrupção. A reportagem ajuda a entender por que, mesmo com tanta tecnologia e
inúmeros recursos, o flagelo das grandes estiagens continua a ser uma pedra no
caminho do sertanejo. Veja reportagem na íntegra.
ESCASSEZ DE COMIDA: Galho da árvore vira opção de alimento no sertão do Ceará |
Os 7 erros |
Seca, corrupção e incompetência
Uma das maiores estiagens da
história castiga 12 milhões de pessoas que vivem no semi-árido brasileiro,
enquanto R$ 9 bilhões repassados pelo governo para combatê-la se perdem na
ineficiência - e até desvios de dinheiro - do poder público
Josie Jeronimo e Izabelle Torres.
Fotos: Yan Boechat – da revista ISTOÉ.
“Tinha o coração grosso, queria
responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato
necessário.” O romance Vidas Secas de Graciliano Ramos captou a alma de
sofrimento do sertanejo no fim da década de 30, quando o Nordeste sofria com
uma das oito maiores secas registradas no século XX. Setenta e cinco anos
depois, 12 milhões de brasileiros de 1.415 municípios do semiárido brasileiro
ainda estão presos à imagem de terra arrasada, vendo os corpos ressecados de
seu gado pregados no chão.
EM SERRITA, PERNAMBUCO, O ÚLTIMO RECURSO: para alimentar o gado, família tira o espinho do mandacaru |
Algumas regiões sofrem um ciclo
de estiagem que já persiste há mais de um ano. O desenho da paisagem permanece
o mesmo, mas estudos de migração populacional realizados pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que a figura dos retirantes,
eternizada pelos personagens de Vidas Secas, quase não existe mais.
Programas sociais como o Bolsa
Família e de socorro e incentivo a pequenos produtores do semiárido tiveram
sucesso em fixar a população em terras com clima de deserto. De acordo com o pesquisador
Helder Araújo, do Ipea, há dez anos a taxa de migração interna era de 5,7%.
Hoje é de 4,5%. Alguns municípios do Nordeste que tiveram sucesso com
empreendimentos de irrigação, como Petrolina (PE) e Barreiras (BA), até
atraíram moradores de outros estados. Mas este cenário positivo não se repete
nas obras de infraestrutura. Todos os anos, o governo federal coloca à
disposição das autoridades locais aproximadamente R$ 9 bilhões para combate à
seca, em programas de gestão hídrica, construção de barragens, canais e
ampliação de perímetros irrigados. E todos os anos a maior parte desse dinheiro
fica retido nos cofres da União, pois os projetos municipais e estaduais não
têm qualidade mínima para atender as exigências – algumas razoáveis, outras
puramente burocráticas – de Brasília. Desde julho do ano passado, 34 relatórios
sobre a situação das regiões atingidas pela estiagem foram devolvidos aos
prefeitos por falhas técnicas e o repasse de recursos foi adiado.
Outra parte do dinheiro se perde
em desvios ligados a conhecidos esquemas de corrupção. A mais ambiciosa obra em
áreas de estiagem no Brasil – a transposição do Rio São Francisco – é um bom
exemplo da situação. Em 2009, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
empreendeu uma caravana para visitar as obras da transposição, orçada em R$ 4,5
bilhões. Quatro anos depois, o custo do empreendimento subiu para R$ 8,4
bilhões e a transposição continua no papel. Segundo auditoria oficial, cinco
dos 14 lotes licitados da obra apresentam fraudes na aplicação dos recursos
públicos.
Neste ambiente, as ações
emergenciais cumprem uma função dupla. São obviamente eleitoreiras e
humanamente indispensáveis. O governo federal já investiu R$ 800 milhões na
compra de cisternas, recipientes que comportam até 16 mil litros de água e
podem abastecer uma família por seis meses. Sem critérios claros para a
distribuição das cisternas, elas se tornaram até um instrumento para a
especulação imobiliária. No Distrito de Rajada, Zona Rural de Petrolina (PE),
um terreno de 30 metros quadrados acumula três cisternas, uma fartura que é
sinônimo de privilégio e desperdício. Em determinadas regiões do Maranhão, não
é possível instalar porque as casas não têm telhados de cerâmica, revelou um
técnico da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, em reunião
com a bancada de deputados maranhenses. “O Maranhão foi contemplado com 4.300
cisternas, mas apenas duas mil foram instaladas. A população é tão pobre que as
cisternas serão devolvidas para o ministério”, conta o deputado Simplício
Araújo (PPS-MA).
Em Salitre, no Ceará, árvore assume aspecto de um cacto |
Mesmo numa emergência tão grande,
a vida não deixa de ser como sempre foi. Quem pensa que a palavra dificuldade
sempre rima com solidariedade pode se surpreender. Não faltam denúncias de
troca de favores entre chefes políticos locais. Em Delmiro Gouveia (AL), o
prefeito Luís Carlos Costa se negou a contratar um empresário selecionado pela
Defesa Civil porque ele faria parte do grupo político adversário. Em Petrolina,
a população denunciou a existência de pelo menos sete carros-pipas fantasmas.
Eles constavam na prestação de contas da prefeitura, mas não apareciam nas
comunidades.
Na construção das barragens –
método de armazenamento da água da chuva – os exemplos de corrupção e mau uso
do dinheiro público se repetem. Por conta do alto nível de evaporação, o
retorno em gestão de recursos hídricos não representa sequer 20% do dinheiro
investido para a construção das estruturas. Somente este ano, o Ministério
Público de Alagoas, Pernambuco e Ceará abriram seis ações para investigar
desvios de recursos na construção de barragens. O Tribunal de Contas da União
(TCU) também investiga o sumiço de R$ 800 mil destinados a obras da adutora do
Agreste, entre Caruaru e Santa Cruz do Capiberibe (PE). A Polícia Federal, por
sua vez, descobriu esquema que desviou R$ 48 milhões em convênios.
RETRATOS DE UM FLAGELO: em Salitre, no ceará, açude seca |
A dificuldade do País para
enfrentar a seca é histórica e se arrasta por anos. As ideias se sucedem, os
planos se multiplicam, mas raras vezes se consegue levá-las adiante de forma
coerente. A miséria pode ser amenizada, e é bom que isso aconteça. Mas a seca,
desde o início de século XXI, mostra um drama que se repete, como se viu há
poucos dias. Apresentado há cinco anos, o projeto 2.447/07, que institui a
Política Nacional de Combate às Secas, passou um longo período esquecido. Na
semana passada, deputados nordestinos tentaram sensibilizar os colegas para
tratar do assunto. Mas a proposta não foi votada sob um argumento cuja lógica é
difícil de ser desafiada: a demora para a discussão foi tão grande que já era
tarde demais para se fazer alguma coisa. Para o professor de engenharia
florestal da Universidade de Brasília, Eraldo Matricardi, a falta de orientação
à população é o principal obstáculo ao fim dos grandes transtornos por longos
períodos de estiagem. Para ele, técnicas simples de sobrevivência, que possuem
baixo custo e seriam de grande utilidade, nem sequer são repassadas aos
moradores de regiões atingidas. “O poder público não se preocupa em ensinar
estratégias fáceis, como colocar garrafas enterradas para evitar a mortalidade
das plantações. Técnicas simples de irrigação também não são ensinadas e as
populações continuam dependendo dos projetos megalomaníacos dos governos”,
avalia o professor.