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Em Minas Gerais pessoas vivem sem documentos e com saúde precária


Luiz Ribeiro - Enviado Especial do CORREIO BRAZILIENSE
José dos Reis Pereira de Sousa é diabético e sobrevive graças ao Auxílio-doença 
Foto: Wilson Medeiros
Lontra e Luislândia (MG) — Ele diz que se chama Tico Gomes da Silva e tem “uns” 70 anos. Mas o nome dele, assim como a idade, não está escrito em nenhum lugar. Não consta em nenhum registro oficial. É difícil acreditar em tal situação. Mas “seu Tico” não tem nenhum documento — nem sequer Certidão de Nascimento. Dessa forma, oficialmente, não existe como cidadão brasileiro. O pequeno agricultor é analfabeto e não sabe a data de nascimento — por isso, não comemora aniversário. Ele mora no povoado de Palmital, no município de Lontra, de 8,39 mil habitantes, a 550 quilômetros de Belo Horizonte, no norte de Minas. A localidade fica a 12 quilômetros do centro da prefeitura, que, como em centenas de pequenas cidades brasileiras, sofre com dificuldades estruturais e carência de recursos para atender direitos básicos da população. “Os meus pais não capricharam com isso”, diz Tico, ao explicar o porquê de nunca ter tido Certidão de Nascimento. Ele conta que sempre “trabalhou para ele mesmo”, no plantio de pequenas lavouras de milho e feijão, na foice (roçando o pasto) e no conserto de cercas. Também cuida de algumas vaquinhas. “Já trabalhei para os outros, mas foi por um período curto, cortando lenha”, diz. A labuta é tocada em uma pequena propriedade, onde Tico mora com dois irmãos: a aposentada Maria de Jesus Gonçalves, a “dona Miúda”, de 60 anos; e, José Geraldo Gomes da Silva, 64, que tem “problema de cabeça”.  Tico garante que nunca saiu do norte de Minas. A cidade mais distante (e maior) que conhece é Montes Claros, município-polo da região, com 364 mil habitantes, a 120 quilômetros de Lontra. Ele afirma que, até hoje, só recebeu tratamento médico uma única vez, há cerca de 20 anos, quando quebrou a perna. “Fui comprar umas coisas para uma tia em Lontra. Chegando lá, o cavalo caiu em cima de mim”, lembra o lavrador, que foi levado a Januária, cidade distante 52 quilômetros. Como não tinha documentos, conseguiu ser atendido graças à ajuda de um amigo, que negociou com os enfermeiros. O cidadão que não existe oficialmente informa que hoje, quando tem algum problema de saúde, recorre a “remédio do mato”. Mas ele reconhece que não está muito distante do mundo que ouve falar. A pequena casa onde vive, coberta de telha de amianto, tem luz elétrica, o que permitiu a chegada da televisão, que ele pouco liga. “Trabalho o dia inteiro. É só escurecer, que vou dormir”, acrescenta. Tico conta que, depois de tantos anos fora das estatísticas, quer fazer parte do Brasil, resgatar sua cidadania. Vai tirar os documentos com o objetivo claro de se aposentar.
Vítimas da seca
Joana Rosa, 62  anos, não tem banheiro em casa. Saneamento inexistente.
Foto: Wilson Medeiros
Outros moradores de Palmital têm documentos, mas estão distantes dos benefícios que, como cidadãos, deveriam acessar. O lavrador José dos Reis Pereira de Souza, 56, é um deles. Ele mora numa casa coberta de palha de coco macaúba e chão batido, com três filhos: Andréa, 22, Jéssica, 17, e Fabiano, 13. No dia que a família recebeu o Correio, o clima na casa era de tristeza, pois estava completando sete dias da morte da mulher do lavrador, Maria José, 48. “Ela teve uns problemas e se foi”, diz. Esses problemas eram anemia, varizes e cirrose. “Ela bebeu uns golinhos e complicou tudo.”  José dos Reis afirma que ficou diabético e, há mais de um ano, não consegue trabalhar. Tudo o que plantou no ano passado foi destruído pela seca. Ele relata que precisou da ajuda de amigos e de vizinhos para botar comida em casa. Felizmente, há cinco meses, passou a receber o auxílio-doença, no valor de um salário mínimo. Mas, para pegar o benefício, uma vez por mês precisa se deslocar por 52km até Januária, pois, em Lontra, existe somente caixa eletrônico de um banco particular, um posto do Banco Postal (Banco do Brasil) e um serviço Caixa Aqui, da Caixa Econômica Federal. O seguro de José é pago por meio de outra instituição financeira. A vida também é marcada pelo sofrimento para Terezinha de Jesus Gonçalves Santos, 59 anos. O marido dela, José Rodrigues dos Santos, 58, enfrenta vários problemas de saúde, que o impedem de trabalhar. Ela recebe o pagamento em Japonvar, a 20 quilômetros de Lontra, mas, para isso, tem de caminhar a pé 12km até pegar uma condução. Ela afirma que passa aperto para garantir o sustento de nove pessoas — incluindo filhos e netos — que moram na casa. “O dinheiro da aposentadoria não dá para quase nada, pois a gente gasta muito com remédio. Todo mês, tenho que pagar uma feira e ficar devendo a outra”, reclama. Mas, para Terezinha, a maior dificuldade é o espaço na moradia, que tem apenas quatro cômodos. “Se eu fosse falar alguma coisa para o governo, queria pedir uma ajuda para puxar mais um cômodo na casa”, diz. As cerca de 70 famílias de pequenos agricultores de Palmital poderiam ter melhores condições de renda se já tivesse entrado em funcionamento uma fabriqueta de farinha, construída pela associação comunitária do lugar. Concluída há dois anos, a unidade fabril continua desativada porque o povoado ainda não conseguiu recursos (R$ 13 mil) do poder público para a instalação elétrica dos equipamentos.