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Neópolis - Cidades do Velho Chico - 31

Seca no Nordeste: Máquina de lavar e Forró. Água encanada, não!


Serafim Raimundo Silva, 76, e sua mulher em seu sítio
que tem parabólica e máquina de lavar em Pernambuco
Foto:
Joel Silva/Folhapress

O descompasso entre a implantação de infraestrutura hídrica e o crescimento da renda no semiárido nordestino fez surgir na região vítimas da seca que não têm água encanada, mas moram em casas com antenas parabólicas, TVs de LCD e até máquinas de lavar. A informação é da reportagem de Fábio Guibu e Daniel Carvalho publicada na edição deste domingo da Folha. Segundo a FGV (Fundação Getúlio Vargas), a renda no Nordeste cresceu 42% entre 2001 e 2009. Já o número de domicílios com água encanada na zona rural aumentou apenas 6,9% entre 2000 e 2010, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em Paranatama, no agreste de Pernambuco, o aposentado Serafim Raimundo da Silva, 76, mora na mesma casa desde criança. Era de taipa, virou de madeira e agora é de tijolo, conta. Na sala, há uma TV de LCD e, no quintal, a máquina de lavar roupa funciona com água de balde.
Agricultor toma banho após recolher água para consumo
em açúde em Paranatama, no agreste pernambucano

Foto:Joel Silva/Folhapress
Além disso, prefeitos de várias cidades insistem em manter as festas públicas e fingem não perceber os efeitos nocivos da pior seca dos últimos 30 anos. Estão mantidas as festas juninas de Jeremoabo e Heliópolis, necessitando confirmar de outros municípios. Em Jeremoabo serão gastos mais de 600 mil. Em Heliópolis os gastos devem ultrapassar a casa dos 500 mil reais. Qual o mistério que faz um homem público gastar tanto dinheiro numa festa popular e não usar tais investimentos para minimizar os efeitos da seca? Uns afirmam que é desumanismo mesmo, outros dizem que os desvios de recursos acontecem principalmente na realização das festas. Num ou noutro caso, o melhor é botar a boca no trombone. O Tribunal de Contas da União já está de olho nas prefeituras que decretaram Estado de Calamidade Pública por causa da seca, receberam verbas emergenciais do Governo Federal e não cancelaram os festejos populares. Mais que certo. Não estamos mesmo em condições de curtir com o dinheiro público vendo nossos irmãos passando necessidade.
Os efeitos da seca no Nordeste
Desde outubro de 2011, a seca vem se agravando e já afeta 26 milhões de pessoas de oito Estados do Nordeste -48% da população total da região. Não chove há mais de 75 dias em cerca de 500 municípios. Para combater o problema no Nordeste e no norte de Minas Gerais, a presidente Dilma Rousseff anunciou na última semana liberação de R$ 2,723 bilhões e a criação da Bolsa Estiagem. Ela também anunciou recursos para o Nordeste quando da visita em Sergipe. Os recursos serão aplicados em ações de urgência e obras de estrutura em até seis meses, quando deve começar novo período chuvoso no semiárido.
Gado não resiste à seca e morre à beira da pista na região de Itiúba
Não se vê um sabiá ou pássaro preto cortando a caatinga.
São os primeiros retirantes da seca ordinária que atinge boa parte da Bahia.
O céu, azul como nunca, pertence somente ao voo sombrio dos urubus.
Mau sinal. O que é fartura para eles representa a sede, a fome e a morte de outros animais.
Nus, os pastos estão cinzas.
FOTO: Arisson Marinho
Não se vê um sabiá ou pássaro preto cortando a caatinga. São os primeiros retirantes da seca ordinária que atinge boa parte da Bahia. O céu, azul como nunca, pertence somente ao voo sombrio dos urubus. Mau sinal. O que é fartura para eles representa a sede, a fome e a morte de outros animais. Nus, os pastos estão cinzas. Em alguns povoados próximos a Itiúba, microrregião de Senhor do Bonfim, no semiárido baiano, as áreas reservadas ao gado parecem ter pegado fogo. O carro de reportagem começa a estremecer de repente, na estrada de barro entre a BA-381 e a pequena cidade de Andorinha. As chamadas costelas de vacas, dobras que a falta de chuva deixa no meio da pista, tornam a viagem demorada. Mas, é em ritmo lento que a seca fica ainda mais triste. Devagar, é possível ver os primeiros pontos brancos em forma de ossadas. Uma a uma vai surgindo. São seis, em uma distância de 15 quilômetros. As carcaças de crânios são a face mais clichê da estiagem, mas também a mais melancólica.
Vacas magras e arriadas:
o primeiro sinal de que a morte está próxima
FOTO: Arisson Marinho
Os animais vivos estão fracos, magros. Muitos não aguentam e ficam “arriados” o dia inteiro. “Tem umas vacas que a gente precisa de cinco homens para levantar e, mesmo assim, não adianta. Elas tornam a cair e em pouco tempo acabam morrendo”, diz Domingos Lopes, 74, que enfrenta toda a arrogância do sol para salvar o que lhe resta. Em pequenas propriedades como a de Domingos, os bichos se protegem debaixo do que resta de vegetação. Quando vê a nossa equipe, o chefe da família mete o facão dentro da bainha e inicia a sessão de lamúrias. Três cabeças do rebanho não resistiram e morreram dentro do seu terreno de 300 tarefas, em Sítio de Piau, a uns 30 quilômetros de Itiúba. Água, só de um pequeno açude improvisado ali perto. Água ruim, tanto para gente quanto para bicho. “Às vezes, até o gado rejeita. É muito salgada”, afirma o velho criador, chegando próximo à cerca de arame farpado.
Para evitar mais mortes, seu Domingos, as duas filhas e um neto têm a difícil missão de retirar os espinhos dos mandacarus. São essas plantas que vão alimentar o gado daqui para frente, pelo menos enquanto não chove.“O mandacaru é somente para ir tapeando eles por enquanto. E a gente vai trabalhando debaixo do sol, furando a mão com os espinhos”, lamenta Domingos, que também tapeia a própria fome com um pedaço de pão seco. “É o meu lanche”, completa, refletindo a aspereza do próprio cotovelo e da boca partida à imagem do chão seco.
Inferno
As duas filhas falam ao mesmo tempo que o pai. “É muito sofrimento, meu filho. Quando vai voltar essa chuva, meu Deus?”, questiona uma delas. “Eu já tô aqui toda furada de espinho. Vida dos diabos, essa nossa. Isso aqui é pior que o inferno”, remoe a outra. Enquanto os três discorrem as desgraças, o cachorro late. É Pirulito, um vira-lata bem preto que tem as costelas como as das vacas, e só para a zoada depois que recebe um esbregue. “Para, cachorro condenado!”, grita Domingos. “Deixa ele. É o território dele”, ouve de conselho. “Território seco do estopô, isso sim”, responde ele, pai de quatro filhas e... “Netos? Eu não sei quantos netos eu tenho, não”.
Difícil raciocinar debaixo de um sol daqueles. Não sabem nem dizer de que povoado pertencem. O mais lúcido é o menino, que tem uns 15 anos. “Aqui é Sítio do Piau”, informou, decidido. O carro tem ar-condicionado. É a salvação. “Poxa, a gente para cinco minutos e quase não aguenta. Imagine ficar horas nesse sol”, observa Eduardo, nosso motorista. Em outras tantas paradas, a realidade é a mesma para muitos pequenos agricultores e criadores como Domingos. Tanto que, mais à frente, há outro animal morto. A diferença é que esse ainda está fresco. Flagramos os urubus refestelando-se com o que parecia ser o cadáver recente. Pelos sinais, o alazão morreu de sede. Na volta, até a carcaça de um tatu e os restos mortais de uma raposa são encontrados. Em alguns momentos, não só o céu, mas também a terra, são dos urubus.
‘Não ia guentar ver meu gado morrer de sede’
Ao meio-dia e alguns minutos, chegamos em Lagoa Grande, distrito de Retirolândia, microrregião de Serrinha. Mas, cadê as pessoas? O cenário é de uma cidade fantasma. Um silêncio assombroso. Fugiram todos da estiagem? Ainda não. O calor é tão intenso que estão trancados dentro de casa. A porta de uma delas se abre. Ouviram o barulho do motor do carro. “Vão chegando, gente”. É Laurindo Ferreira de Lima, 65 anos, praticamente puxando os forasteiros para dentro da residência. Com ele, outros três idosos, um bebê e uma jovem, todos sentados no chão. “É porque no chão é menos quente. A gente fica aqui proseando para passar o tempo. Não tem nada para fazer”, explica.
Se não tem gente nas propriedades do lugarejo, há ainda menos animais. Seu Laurindo, por exemplo, vendeu quase tudo o que tinha. Só ficaram algumas galinhas e poucas cabras. “Não ia guentar ver meu gado morrendo. É triste demais, moço”, justifica. O silêncio incomoda mesmo. “A gente, pra fazer barulho aqui, só se for pra chorar”, diz uma mulher. Não há mesmo muito o que falar quando a água está acabando. O caminhão-pipa passou há uma semana. “Vai acabar hoje. A partir de amanhã eu não sei o que vai ser”. Diante disso, em uma casa com idosos e crianças não se pensa duas vezes para pegar um litro de água mineral gelada no carro. Uma das mulheres levanta-se e segura a garrafa. Os olhos brilham.
 Informações complementares e reportagens de Alexandre Lyrio – do CORREIO – e de Fábio Guibu e Daniel Carvalho – da FOLHA DE SÃO PAULO.