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Carinhanha - Cidades do Velho Chico 22

Deolinda depois da morte


No início de tudo, Ismael não entendia o motivo de tanta badalação em torno da morte da mãe. Achava uma coisa ridícula gente sair do interior da Bahia, do Cariri do Ceará, de Presidente Figueiredo no Amazonas, de Uruguaiana no Rio Grande do Sul para chorar a morte de uma cantora romântica. Até de Mateiros no Tocantins vieram pessoas. Trouxeram cartazes de shows, discos com autógrafos, camisas com marcas de batom e amontoaram tudo na escadaria do Teatro Castro Alves, quase impedindo a entrada das pessoas para ver o corpo. Gente de todos os cantos veio dar o último adeus a Deolinda, a voz mais representativa da dor de cotovelo. Os boleros cantados por ela viraram vinte e um discos gravados, mas Ismael não tinha noção da importância da mãe para a formação da cultura popular no país.

Só após o último suspiro dado numa sala de emergência do Hospital Clériston Andrade, em Feira de Santana, Ismael pode perceber o alcance do nome de Deolinda. Para ser exato, ele nunca gostou das músicas da mãe. Aquelas canções repletas de dores de amor, de paixões perdidas, de traições com nuances diversas não eram do seu gosto. Ele adorava Titãs, Ira, Capital Inicial, Pitty, Santana e fã de carteirinha do Legião Urbana, a banda que estava fazendo o maior sucesso no Brasil inteiro. Nunca quis maior envolvimento com a obra da mãe, embora fosse obrigado a ouvir muita coisa, quando músicos vinham gravar no estúdio da casa deles.

De tanto ver entrar e sair músicos de sua casa, Ismael até que desejou ser um deles, mas preferiu a guitarra. Sua mãe chegou a comprar um piano para ele quando ainda com nove anos, mas o desinteresse era notório. Deolinda não forçou a barra e sempre dizia a ele com aquela voz paciente:

     - Ninguém é forçado a fazer o que não quer. Tenha paciência que sua vocação virá um dia.

Nunca mais ela insistiu. No fundo esperava que o filho ficasse interessado em preservar sua obra. Era a única esperança de sua vida. Depois de dois casamentos fracassados, só restava o filho para cuidar de tudo que ela deixou. É verdade que a vida de cantora não lhe trouxe fortuna, mas aquela casa no bairro do Rio Vermelho e seu refúgio na Praia do Forte foram frutos de uma vida inteira nos palcos da vida. É verdade que poderia ter um pouco mais não fossem os dois maridos. O primeiro, quando ela descobriu, estava de caso com uma garota de vinte anos. Foi aí que percebeu onde ele gastava seu dinheiro já que a garota era um luxo só. Ainda bem que foi só um contrato e ele não tirou dela mais nada, embora tentasse retornar ao leito por um longo período, até o dia que um tiro de um marido ciumento lhe tirou a vida. Foi um escândalo! O segundo ela encontrou num show em Goiânia. Moreno, lábios carnudos, porte de atleta e mexeu com os seus hormônios. Trouxe-lhe flores, poemas, presentes. Até uma garrafa de tequila importada ele a presenteou. A insistência deu num encontro e a paixão das suas músicas virou realidade. Foi seu companheiro por mais de vinte anos e morreu vítima do câncer. Não adiantou contratar os melhores médicos, nas melhores clínicas, nos melhores hospitais. Ranulfo morreu antes de completar sessenta anos.

Depois daquele dia triste, Deolinda, que já passava dos sessenta anos, olhou em volta e viu que estava só. Seu único irmão morava em Brasília, envolvido com o Ministério das Relações Exteriores. Seus sobrinhos estavam na faculdade e cuidavam da própria vida. Morarem em Salvador, nem pensar! Eram de outro mundo. Como nunca ficou grávida, embora tivesse feito tudo recomendado pelos médicos, resolveu tomar uma atitude. Tinha que fazer uma adoção. Entre um show e outro procurava informações, mas nada aparecia. Ela queria uma criança recém-nascida. Não queria alguém já com memória do mundo. Num show na praça pública em Ribeira do Pombal, o baterista de sua banda disse que depois da apresentação não seguiria para Salvador.

     - Preciso ir a Sítio do Quinto. Houve um acidente na BR 110 e há familiares meus envolvidos. As informações estão desencontradas. Preciso estar lá urgente.

Aclézio foi liberado para a viagem logo depois do show. Já em Salvador comunicou a Deolinda que a mãe dele só teve alguns ferimentos e o filho que ela tanto queria adotar apareceu. No acidente, três pessoas morreram, todas de Sítio do Quinto, inclusive uma menina de 17 anos que estava voltando para casa após receber alta de um pós-parto. Era mãe solteira, pobre. O pai não quer assumir, por já ter uma família e a avó não tem condições de criar o menino. Deolinda foi a Sítio do Quinto e trouxe a criança. Providenciou toda papelada em Jeremoabo e registrou Ismael como seu filho. Enquanto foi viva, a cantora não deixou faltar nada para a avó do filho até sua morte sete anos depois.

Ismael sempre foi obediente, mas Deolinda sabia que o caminho dele era outro. Depois da compra daquele piano, sonho que ela acalentava desde os tempos de criança em Araci, sua terra natal, percebeu que o filho não gostava do seu estilo ou até mesmo da música. Com ela foi diferente. Vivia na roça e se interessou por música quando o pai comprou uma radiola a bateria e o disco de Vicente Celestino. Daí para Maísa foi um pulo. Ficava de ouvido no rádio, quando alguma emissora era sintonizada. De cantora de igreja passou ao palco num concurso de calouros num circo em Araci. Daí em diante só cresceu. Rio de Janeiro e São Paulo, antes tão distantes, agora eram praticamente o quintal da sua casa. Se recusava a sair da Bahia e vivia de aeroporto em aeroporto, mesmo sem nunca vencer o medo de voar. Em várias excursões levou Ismael, mas ele só mesmo se interessou pelo rock.

Ao ver sua mãe morrer antes de completar oitenta anos, com seu retrato estampado em vários jornais do país, sendo ovacionada como a mais afinada cantora do Brasil, comentaristas traduzindo suas canções como poesias sonoras e toda aquela demonstração de afeto dos fãs de todo o país, não teve dúvida: tinha um tesouro dentro de casa e não percebeu. Ismael chorou o que pode. Suas lágrimas rolaram manchando páginas e mais páginas de jornais e revistas por todo o país. Também embaçou as lentes das Tvs e emocionou os ouvintes nas ondas do rádio. No velório quase tudo parou. A fila de fãs dava voltas no largo do Campo Grande para dar o último adeus a Deolinda. Suas músicas tocavam o dia inteiro onde quer que se chegasse. Até luto oficial de três dias foi decretado e já havia até políticos apresentando leis para nomear avenidas e ruas com o nome da cantora.

Quanto mais as homenagens se intensificavam mais aumentava o arrependimento de Ismael em não ter percebido o valor da mãe e a riqueza que ela trazia naquela voz única. Por que não percebeu isso em vida? Por que não teve atração por tudo aquilo? Por que não se apaixonou por suas canções? Por que não pode dar o seu devido valor em vida? Foi necessário vir a morte dela e o reconhecimento de um país inteiro para que ele, o mais próximo, o que dormia num quarto ao lado do seu, aquele que recebeu os mais sinceros carinhos de uma mãe que teve a potência do útero transferida às cordas vocais, iluminasse em sua ciência o ilimitado valor do seu amor. 

(Landisvalth Lima - do livro Contos levemente amaros, inédito)