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Carinhanha - Cidades do Velho Chico 22

Quando a arma vale mais que o homem

O uso da arma é o argumento dos covardes. (Foto: Google)

O assunto é sério, Doutor! A gente não tem mais sossego onde quer que se vá hoje. Quem se lembra daquele Sergipe de outrora, onde se podia colocar roupa para secar na frente da porta ou esparramar aquele feijão pelo chão para receber a quentura do sol? Quem se alembra do tempo que a gente podia mandar um dinheiro, qualquer valor, até por uma criança, para entregar num lugar ou outro e tudo corria bem? Esse sossego acabou-se. Parece que a moda agora é comemorar quando se sai e não é assaltado.

Ontem mesmo, peguei a topic em Poço Verde para ir até Aracaju. Lá fui fazer o tal exame da próstata. Velho que sou, não deixo tempo ruim chegar. A morte pode até aparecer na porta, mas eu não vou mandar convite não, Doutor! É só dizer o que tenho de fazer! Comigo não tem três tempos! Mas voltando, assim que terminei a consulta voltei para a Rodoviária Nova para pegar a topic de volta. Mais tranquilo, ia observando o movimento da capital, cada dia maior.

Quando estava já sentado em minha poltrona, com a máscara ajeitada na lapa da cara, uma comadre senta ao meu lado. Era uma velha conhecida, moradora do povoado Recanto. Disse que me conhecia desde os tempos que eu morava no São José. Depois que me mudei para a cidade de Poço Verde nunca mais ela se bateu comigo. Contou sua viuvez, os filhos que já estavam em São Paulo – todos encaminhados na vida graças à Deus! Já que ela abria sua vida para mim, contei as minhas desventuras, a morte de minha mulher de câncer e o nascimento de meu único neto, filho de minha única filha – hoje morando em Salvador. 

A prosa caminhava bem encurtando a viagem. Na altura da cidade de Itaporanga, já fora da cidade, alguém tira uma arma da cintura e anuncia um assalto. Depois de um suspiro de medo, o silêncio bateu forte. Só se ouvia o ronco do motor e os gritos do malandro pedindo ao motorista que seguisse viagem enquanto o bandido prometia fazer uma limpeza nos passageiros. Primeiro foi logo no cobrador e pediu para passar todo o dinheiro. Eu logo vi que chegaria a mim bem logo porque estava na segunda fileira de cadeira, na janela, com minha comadre do lado já tremendo que só vara verde.

O assaltante começou a recolher dinheiro da primeira fileira, mas havia dois policiais sem farda na terceira fileira. Eles só estavam esperando o melhor momento. Sacaram a arma quando o bandido se virou para colher o que não era seu numa poltrona atrás do motorista. Um policial gritou e pediu que ele largasse a arma. Só que o peste não largou não e mandou bala. O primeiro tiro não saiu. O policial atirou caído no corredor e o tiro pegou no ombro do assaltante. Meio desequilibrado, o bandido atirou mais uma vez. Foi aí, Doutor, que eu senti um calafrio. Se tivesse coisa pronta borraria as calças. A bala atingiu o ombro de uma mulher de raspão, atravessou a poltrona e foi se alojar no braço da poltrona em que eu estava. Faltou um tintim para me atingir no coração.

Os policiais conseguiram dominar o malandro que, sem a arma, despencou do alto de sua valentia. Chorava feito um bebê pedindo para ser solto, que iria embora e não roubaria mais ninguém. As duas cenas passaram pela minha cabeça, Doutor, com o malandro falando grosso com a arma na mão e depois chorando a música dos covardes. Talvez seja por isso que muitos desejam armar a população. Passada a peleja toda, depois que levaram a baleada para o hospital e todos voltaram à vida pós susto, até Poço Verde foi o assunto. A minha vida e a vida da minha comadre do Recanto, como relatos do passado, ficaram pela metade, Doutor. Um dia não dá para dizer tudo porque a vida é cheia de surpresas.

De tudo que passei ontem, a imagem que não me sai da cabeça é ver um homem implorar misericórdia quando desarmado. A arma valia mais que ele.