Prestes e Olga foram presos e tiveram suas cartas apreendidas no Brasil (Foto: Istoé) |
Artigo publicado no portal
revista ISTOÉ, desta semana, assinado por Antônio Carlos Prado, denominado A
teimosia dos fatos, traz três exemplos de como a verdade histórica sempre
se revela e se impõe ao obscurantismo dos regimes totalitários. Se você é um
leitor que defende ideologias, e não ideias, pare por aqui! Não perca seu tempo
com textos que nos fazem ver a história como alicerce para construção de
futuros.
O texto inicia dizendo que governos
arbitrários e regimes autoritários fazem mirabolantes movimentos para esconder
as atrocidades e desumanidades que cometem. Varrem a própria sujeira para
debaixo do tapete da história na tonta ilusão de que nunca chegará alguém para
arrumar a sala. Um belo dia, o destino recompõe a verdade, como acaba de
acontecer com a revelação de trezentas e trinta e uma cartas enviadas por Olga
Benário a seu marido, o líder comunista Luiz Carlos Prestes, quando ambos
estiveram presos, vítimas do nazismo na Alemanha e da ditadura do Estado Novo
implantada no Brasil por Getúlio Vargas. O destino em questão é um pobre e
humilde carroceiro, sem eira nem beira, que encontrou o pacote com todas essas
cartas numa lixeira de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Desconhecendo totalmente do que
se tratava, ele, o destino a puxar carroça, vendeu tal pacote na feira de
camelôs e ambulantes da Praça Quinze. O comprador interessou-se pelos selos e
envelopes carimbados com a expressão “censura” pelos governos do México,
Brasil, França e Alemanha, mas também não atinou com o valor histórico daquilo
que possuía em mãos. Finalmente, o barraqueiro Carlos Otávio Gouvêa Faria
percebeu que todo aquele amontado de papeis era a correspondência de Olga e
Prestes — e, imediatamente, adquiriu todo o material (não revela o quanto
pagou). Tudo isso se desenrolou ao logo de cinco anos, até que a história vem
agora a público pelo excelente trabalho dos jornalistas José Casado e Ascânio
Seleme.
Façamos um rápido corte na história
das cartas para situarmos, também rapidamente, os personagens históricos Luiz
Carlos Prestes e Olga Benário. Eles se conheceram na extinta União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, em dezembro de 1934. Por que estavam em
Moscou? Prestes era o líder máximo do Partido Comunista do Brasil, stalinista e
membro de destaque do Comintern (a Terceira Internacional instaurada, nos anos
1920, pelo leninismo). Olga Benário, de origem judaico-alemã, era uma das mais
destacadas agentes soviéticas. Apaixonaram-se. Casaram-se. Lua de mel? Vieram
ao Brasil para deflagrar o levante comunista de 1935 (Rio Grande do Norte,
Pernambuco e Rio de Janeiro) contra o governo de Getúlio Vargas. A derrota se
deu de forma fragorosa. Em 1936 ambos foram presos no Rio de Janeiro, e aí
começam as cartas (voltemos a elas) que, tantas décadas depois, seriam
negociadas na Praça Quinze – e que por pouco não acabaram trituradas em algum
caminhão de limpeza urbana. Elas tornam pública toda a tortura física e mental
que Prestes e Olga sofreram, torturas promovidas e ocultadas pelo nazismo e por
Vargas. Agora o tapete da sala do arbítrio foi levantado.
Em uma das primeiras cartas,
jamais recebida por Prestes porque a ditadura de Getúlio Vargas a bloqueou,
Olga informava sobre a sua gravidez. Mesmo grávida, no entanto, foi deportada
por Vargas para a Alemanha de Adolf Hitler, e lá nasceu em novembro de 1936, em
um campo de extermínio, a filha Anita Leocádia. Olga foi executada em 1942 em
Ravensbrück. Prestes permaneceu preso no Rio de Janeiro por nove anos (sete
deles numa solitária), ganhou anistia em 1945, elegeu-se senador e encontrou
Anita, pela primeira vez, quando a garota já estava com quase dez anos de
idade.
Há na história do Brasil muitos
outros tapetes que esconderam sujeiras de regimes de exceção, mas que acabaram
erguidos quando se abriram portas e janelas para o sol da democracia entrar nos
aposentos — “o sol, o melhor detergente”, como o definiu o ex-juiz da Suprema
Corte dos EUA Louis Brandeis. O tapete do golpe militar de 1964 serve de
exemplo. No auge da repressão contra os que se opunham à ditadura, diversos
guerrilheiros, assassinados sob tortura, tiveram os seus corpos enterrados
clandestinamente no cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus. Os
coveiros da ditadura enterraram-nos em valas comuns, junto aos muros, e com os
codinomes pelos quais tais militantes eram conhecidos em suas organizações de
guerrilha. Quis o destino (sempre ele!) que ISTOÉ obtivesse listas com os nomes
verdadeiros e também com os codinomes dessas pessoas. ISTOÉ foi então ao
Instituto Médico Legal. Diante da apresentação dos nomes verídicos, nenhum
registro surgiu de empoeirados e cavernosos arquivos. Quando esses arquivos
foram consultados pelos nomes falsos, a verdade berrou: todos os cadáveres
enterrados, no silêncio das madrugadas, no cemitério de Perus.
Igual sujeira, varrida e
escondida nessa época, foi a morte selvagem imposta ao guerrilheiro Stuart
Edgar Angel, filho da estilista Zuzu Angel — ele morreu com a boca acoplada a
um escapamento de jipe, do qual saía gás quando os torturadores aceleravam o
veículo. Zuzu, que chegou a costurar para a esposa do ditador Arthur da Costa e
Silva (o carrasco do AI-5), procurou saber a verdade sobre a morte de Stuart
junto aos próprios militares. Nada conseguiu. Fez campanha no Brasil, e nada.
Fez campanha no exterior, e nada. A perceber que agentes da repressão começavam
a segui-la, e temendo que provocassem a sua morte em um acidente de carro,
distribuiu cartas a amigos, entre eles o cantor e compositor Chico Buarque,
avisando que, se “algo” lhe acontecesse, os responsáveis seriam “os mesmos que
mataram o meu filho”. O acidente ocorreu em 1976. Duas décadas depois, o
próprio governo brasileiro (gestão FHC) levantou o tapete e admitiu: Zuzu fora
assassinada. Para ela, Chico compôs “Angélica”: “(…) quem é essa mulher/ que
canta sempre esse estribilho/só queria embalar meu filho/que mora na escuridão
do mar (…)”. Na quarta-feira 21, a Justiça do Rio de Janeiro suspendeu o leilão
das cartas que estava programado.
E quer saber como essa raridade
histórica foi perdida a ponto de ser encontrada numa lixeira.