'Temos juízes com férias de 60
dias e outros que não trabalham de segunda e sexta', diz presidente da OAB-SP
sobre lentidão da Justiça.”
Marcos da Costa deu entrevista à BBC Brasil (foto: OAB-SP divulgação) |
É possível até que não se
concorde com todas as ideias defendidas por ele, mas que a entrevista que o
presidente da OAB- São Paulo, Marcos da Costa, foi para lá de reveladora isso
ninguém pode negar. Ele diz, por exemplo, que o direito de defesa do cidadão
nunca esteve tão ameaçado no Brasil desde o fim da ditadura. Além disso, diz
que entre os principais motivos para a morosidade da Justiça estão problemas de
gestão e mazelas do próprio Judiciário, como excesso de folgas dos magistrados.
Costa concedeu entrevista à BBC
Brasil em seu escritório uma semana antes de abrir a 23ª Conferência Nacional
da Advocacia Brasileira, que ocorrerá entre 27 e 30 de novembro, cujo tema será
a defesa de direitos fundamentais como um dos pilares da democracia. A
entrevista foi publicada no portal Msn.com. Veja o que diz o líder dos
advogados do Brasil
BBC Brasil - Como a operação Lava Jato tem afetado o trabalho da
advocacia?
Marcos da Costa - Não sei se a
Lava Jato... Tivemos momentos anteriores, por exemplo, no Mensalão, em que o
Estado cumpriu seu papel de investigar e identificar o cometimento de crime. A
advocacia cumpriu seu papel de defender quem é inocente e garantir que os
culpados tenham a condenação adequada de acordo com a lei - com o direito de
defesa assegurado, com o contraditório, porque só assim se faz justiça.
BBC Brasil - Você vê casos de advogados grampeados, busca e apreensão
em escritórios...
Costa - Nesse caso, são
autoridades que, procurando exercer seu papel, ferem garantias constitucionais.
Quando isso acontece, num primeiro momento você pode até ter uma satisfação
dada à população no que diz respeito ao clamor por Justiça. Mas uma análise melhor
por parte do próprio Judiciário muitas vezes leva à anulação, o que gera um
clamor ainda maior das pessoas, uma frustração. O processo existe para que se
encontre culpados e se absolva inocentes, sempre dentro da legalidade.
BBC Brasil - A delação premiada tem sido mais usada.
Costa - É um instrumento
importante que tem servido inegavelmente para combater o crime de corrupção,
que é difícil de identificar. Mas ela precisa ser ponderada. Se a delação
apresenta informações, elas precisam ser comprovadas. O que não pode é a
delação por si própria ser considerada uma prova ou transmitida pela sociedade
como condenação.
BBC Brasil - Há abusos?
Costa - Toda vez que a delação ou
outro instrumento é utilizado sem as cautelas necessárias para que todos os
envolvidos tenham assegurado o direito de defesa, vai haver um desvio de
finalidade.
BBC Brasil - Estamos mais sujeitos hoje ao ataque do direito de defesa
do que em outros momentos da história no país?
Costa - Dentro do período
democrático, não tenho dúvidas. Temos um Estado que não tem sido capaz de
atender o clamor da sociedade (por Justiça). E, em vez de combater suas
próprias mazelas, de rever a si próprio e identificar por que não tem cumprido
sua missão social, ele joga para os ombros do cidadão e a responsabilidade pela
impunidade ou pela morosidade (da Justiça) e mitiga direitos. Aí vêm ataques
contra o direito constitucional da ampla defesa, ataques a recursos, ataque ao
princípio de acolhimento só de provas obtidas por meio lícito. A gente vê casos
de condução coercitiva decretados fora do previsto em lei. Isso gera
impossibilidade da pessoa se encontrar com o advogado para conhecer quais são
seus direitos.
BBC Brasil - A Justiça é ineficiente, demorada?
Costa - Não era, passou a ser. Quando
me formei, há 30 anos, tínhamos o final do processo num tempo muito menor do
que é hoje. A Constituição de 1988 ampliou e reforçou direitos, portanto
reforçando a cidadania, visou garantir o acesso de todos à Justiça. Mas o
Estado em si não se estruturou para dar conta desse processo. Ele não investe
na Justiça como deveria. A participação da Justiça no orçamento dos Estados ou
da União poderia chegar à 6%, teve ano que chegou a 5,6%. Hoje está girando em
torno de 4%. E temos um problema de estrutura do Judiciário, de gestão interna.
Temos juízes com férias de 60 dias, temos juízes que não trabalham de segunda e
não trabalham de sexta, temos desembargadores que não vão todos os dias ao
Tribunal de Justiça. E temos recesso forense em janeiro e julho nos tribunais
superiores. Agora mesmo, um feriado que era de sábado (o Dia do Servidor
Público, em 28/10) foi antecipado (pelo STF) para sexta feira (3/11), para
permitir que as pessoas pudessem emendar. Ou, quando teve Sexta-feira Santa, a
Justiça Federal fechou na quarta. Você vê magistrados dando aula durante o
expediente. Essa é uma situação que o CNJ deveria enfrentar. Que dê aula à
noite, aos fins de semana, em horários que não vão coincidir com o expediente.
É a falta de uma visão interna onde a Justiça discuta suas próprias mazelas,
sua própria estrutura. E tem o fato de que esse Estado que não investe é o
maior demandante da Justiça. Temos algo como 100 milhões de processos. Desses,
50 milhões são executivos fiscais. Dos dez maiores demandantes da Justiça do
Trabalho - que é uma Justiça de caráter mais privado -, oito são entidades do
Estado. Ele concorre com o cidadão na demanda por Justiça.
BBC Brasil - Como falar de falta de investimento na Justiça quando a
gente vê altos pagamentos para magistrados, casos de juízes que têm
recebimentos muito acima do teto?
Costa - Isso é outra coisa. A
Ordem faz uma denúncia em relação aos acréscimos que são pagos. Eles são
decididos em processos administrativos internos, onde não há o contraponto de
uma outra parte permitindo que se avalie se esse pagamento é devido. Os
salários são adequados aos limites estabelecidos pela Constituição. O problema
são os acréscimos. Por exemplo, o auxílio-moradia (que estava previsto em lei
federal apenas para membros do Ministério Público Federal e acabou sendo
estendido à magistratura). Qualquer despesa nova precisa definir a fonte de
custeio e precisa ser por lei, no Congresso Nacional ou nas Assembleias
Legislativas, onde é possível a sociedade se manifestar a favor ou contra. Tivemos
nessa semana uma notícia que foi autorizado no Rio o chamado auxílio-peru
(pagamento de R$ 2 mil como abono de Natal) para servidores do Poder
Judiciário. O Rio de Janeiro não consegue nem pagar o 13º (de servidores
públicos) de 2016... E o Judiciário se autopromove esse pagamento? São
disparates que não podemos mais aceitar.
BBC Brasil - A corrupção também atinge o Judiciário?
Costa - Não acredito que haja um
grau de corrupção dentro do Judiciário que justifique dizer que ele está
comprometido. Existem casos, que são analisados. O que penso é que processo
criminal contra magistrado e promotor deveria ter prioridade no julgamento, a bem
da imagem da Justiça. Porque um magistrado que pratica ato de corrupção é
afastado com proventos integrais. Continua recebendo até o processo transitar
em julgado (quando não cabe mais recurso).
BBC Brasil - O excesso de recursos e instâncias não é também
responsável pela morosidade da Justiça? A gente vê muitos processos sobre
assuntos ordinários chegando ao STF.
Costa - São duas coisas
diferentes. Uma coisa é discutir a competência do STF, do STJ. Outra coisa é:
uma vez que a lei assegura o direito de defesa, ver mitigar esse direito. Então
se há um excesso de competência do Supremo, do ministro julgar 11 mil processos
por ano, então num ambiente adequado, que é no Congresso Nacional, que se
discuta essa competência.
BBC Brasil - Existe esse excesso de competência?
Costa - Toda discussão é válida.
O que eu insisto: o Supremo tem recesso em janeiro, tem recesso em julho, tem
emenda de feriado... E aí atribuir ao cidadão a culpa da morosidade e mitigar
uma cláusula pétrea da Constituição que é a presunção de inocência, não é
possível de admitir. Não está dentro da regra do Estado democrático. E se o
Supremo afastou essa cláusula ao permitir prender após condenação em segunda
instância, corre o risco de querer afastar outra. É um risco quando o Judiciário
passa a ser ativista e deixa os limites do julgamento isento. O cidadão que é
condenado em definitivo tem a pena definida com base na lei. Mas o sujeito que
é preso antes do trânsito em julgado vai ficar quanto tempo preso até o Supremo
julgar o processo dele? O tempo pode ultrapassar a pena máxima do crime atribuído
a ele e do qual ele pode não ser culpado. Outro ponto: um sujeito condenado tem
o direito à progressão de regime. E a pessoa presa sem trânsito em julgado não.
BBC Brasil - Em que ponto a OAB concorda com o discurso anticorrupção
do Ministério Público e onde diverge?
Costa - Nós temos o mesmo
ideário. Ninguém quer ver um país onde dinheiro que deveria ser destinado à
educação, à saúde, à segurança é desviado para bolsos particulares num conluio
entre público e privado inaceitável. A Ordem tem uma série de propostas. A de
criminalização do caixa dois não é do Ministério Público, é da OAB. No caso da
Lei da Ficha limpa, colhemos assinaturas para dar suporte. A proposta de
regulação do lobby também é nossa. Nos afastamos de uma parcela do Ministério
Público quando propostas ultrapassam os limites do Estado Democrático de
Direito. Como a de aproveitamento de prova obtida por meio ilícito (uma das 10
Medidas Contra a Corrupção) se o agente estiver de boa-fé. Não existe boa-fé
para um agente do Estado! O conceito de boa fé é do direito privado. Ele é um
pressuposto, então é a má-fé que deve ser provada. Ou seja, além de tudo, nessa
proposta você que teria que provar a má-fé dos agentes. É um disparate. (Outro
exemplo é) a suspensão da prescrição enquanto aguarda o julgamento de recurso.
O Estado tem o direito de investigar, de denunciar e de julgar, mas o cidadão
tem o direito de que isso seja feito num tempo razoável. Ele não pode ficar
parado esperando o julgamento. E o processo penal não é só contra o criminoso.
Inocente responde processo penal também.
BBC Brasil - Se há tantos problemas com as Dez Medidas, por que elas
têm tanto apoio?
Costa - Porque acho que
desconhecem (o conteúdo). A começar pela expressão midiática das Dez Medidas.
Não são Dez Medidas. São algo em torno de cem. Elas são apresentadas à
sociedade como medidas necessárias para o combate à corrupção. Ninguém vai ser
contra combater a corrupção. Mas quanto, da sociedade, leram? Para qualquer
crime que se queira combater, há limites definidos na lei. Se não houver
observação das garantias fundamentais, do devido processo legal, não teremos
Justiça, teremos "justiçaria".
BBC Brasil - Como regularizar o lobby ajuda a combater a corrupção?
Costa - O Congresso é o palco de
discussão dos grandes temas. Você ter uma posição e defendê-la junto aos
congressistas é absolutamente normal e importante. O que não é admissível é que
essa apresentação dos interesses seja feita de forma não republicana, como
através de compra de deputados. É preciso regular essa atividade, que é lícita,
dando mais transparência, impedindo entrega de presentes e chantagens.
BBC Brasil - E o fim do foro privilegiado?
Costa - Só teremos um país
efetivamente republicano quando não houver nenhuma hipótese de o cargo trazer
benefício que leve alguém a se auto dispensar o cumprimento de uma lei. E o
foro privilegiado acaba servindo para isso, para pessoas se protegerem contra o
sistema de Justiça. Algumas constituições estaduais preveem foro privilegiado
para todos os vereadores de todos os municípios, para delegados. No fundo,
quase todos os agentes acabam tendo algum tipo de benefício. Hoje sou
completamente a favor do fim do foro privilegiado, salvo raríssimas exceções.
BBC Brasil - Ministros?
Costa - Não, eles têm que ser
julgados pela justiça comum.
BBC Brasil - Não é perigoso um ministro estar sujeito a um juiz de
primeira instância?
Aí temos que confiar no sistema
de Justiça. Temos que ter recursos... O que às vezes é tão combatido, serve para
isso. Se houver decisão política, o sistema vai ter em si mesmo meios para
combater.
BBC Brasil - Não existem vantagens?
Costa - Existiam lá atrás, de
proteção à função. Na essência ele visava proteger o congressista dos abusos.
Era algo que vinha dos receios de quem tinha saído de uma ditadura de 20 anos.
Mas já estamos há 30 anos da Constituição de 1988. Aquele momento já passou.
BBC Brasil - Como o sr. vê essa divisão no Supremo, esses embates como
o que houve recentemente entre os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto
Barroso?
Costa - O embate é próprio do
órgão colegiado. Mas tem que ser sempre em cima de ideias e de tese. Sempre com
respeitos aos colegas. Quando os limites são ultrapassados, o Judiciário vai
sendo enfraquecido.
BBC Brasil - Como chegamos a esse ponto?
Costa - A sociedade está muito
assim. Os espaços públicos não são afastados da sociedade como um todo. Quem
está num cargo público não deve se deixar contaminar por esse ambiente de
intolerância.
BBC Brasil - A OAB tem um histórico muito importante de defesa da
democracia. Mas também tem momentos que hoje são vistos como erros, como textos
publicados à época de apoio ao Golpe Militar de 1964. Hoje, nesse momento de
crise política, a Ordem cumpre seu papel?
Costa - Quando você está
vivenciando um momento histórico, faz o que acredita ser o mais correto. Se é
ou não, é o futuro que vai julgar. É difícil avaliar enquanto está vivendo. Busquei
os registros da Ordem de São Paulo naquele momento. Em uma reunião
extraordinária um dia após o anúncio de que o governo militar estava se
afastando do que tinha prometido, você vê um movimento no sentido de exigir a
manutenção das prerrogativas profissionais, que são o instrumento de defesa dos
direitos do cidadão. Para mim isso é uma indicação de que aqui em São Paulo o
ambiente não foi a favor. E hoje a Ordem está fazendo muito. O eixo da
Conferência Nacional da Advocacia Brasileira é justamente a garantia de
direitos fundamentais. No dia 9 de dezembro, Dia Internacional de Combate à
Corrupção, vamos promover um evento na Catedral da Sé com muitas entidades para
chamar a sociedade para assumir sua responsabilidade. É ela que vai enfrentar
esse problema. Nas relações pessoais, sociais e econômicas e na eleição do ano
que vem, escolhendo candidatos comprometidos com a ética.
BBC Brasil - Foi um acerto ou um erro a posição da OAB em favor do
impeachment da presidente Dilma Rousseff?
Costa - A ordem fez isso de forma
técnica, não de forma política. A Ordem é apartidária. Tem profissionais que
analisaram o tema do ponto de vista técnico e entenderam que houve a violação
de regras que justificavam investigação. E a investigação, no caso de crime de
responsabilidade, se dá pelo Congresso.
BBC Brasil - Mas mesmo uma posição técnica, não dá para avaliar se foi
um acerto ou um erro?
Costa - Daquilo que foi estudado,
dentro do debate que foi feito, se extraiu uma posição técnica de que havia
elementos para investigação de eventual crime de responsabilidade. A Ordem não
trata dessa questão do ponto de vista político. Consequência política não é
problema da Ordem. Consequência política é para ser enfrentada pela classe
política. Tanto que, no crime comum, o julgamento é técnico. No crime de
responsabilidade, o julgamento bate numa questão técnica, mas tem um fundamento
político. Tanto que a Constituição indica a Câmara para apreciar e o Senado
para julgar. (Sobre) o parâmetro técnico, a Ordem se manifestou. O parâmetro
político, aí foi o Congresso que decidiu.