A revista VEJA publica na edição desta semana uma reportagem intrigante. Todos os ministros que assumiram a Casa
Civil da Presidência da República na era Lula estão milionários. Todos sabem
que os salários pagos pela pasta não chegam a ser coisa para promover
enriquecimento. Então, onde está o mistério? É o que vamos ver nesta
interessante reportagem de Rodrigo Rangel e Robson Bonin, na íntegra.
GOLPE - A ex-ministra Erenice Guerra se associou secretamente a José Ricardo,
conselheiro do tribunal da Receita Federal, para atuar em defesa
de uma empresa junto ao Fisco (VEJA.com/VEJA)
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O segredo da Casa Civil
Os petistas José Dirceu, Erenice
Guerra e Antonio Palocci chefiaram a Casa Civil da Presidência. Os três ficaram
milionários depois de deixar o governo. Como esse milagre foi operado? A
polícia começa a descobrir
O poder do chefe da Casa Civil
da Presidência da República, como quase tudo no governo do PT, é uma relação
incestuosa entre o partido e o Estado. José Dirceu, que foi ministro da Casa
Civil na fase inicial do primeiro mandato de Lula, já abriu os trabalhos
ampliando os poderes de sua pasta. Ele comandava a máquina partidária e vendeu
aos radicais a ideia de que Lula só se elegeria em 2002 com a suavização do
discurso socialista estatizante e hostil ao livre mercado. Deu certo, e a
figura de leão vegetariano colada a Lula funcionou na costura das alianças e
nas urnas. Em retribuição, José Dirceu tornou-se superministro, condição que
alardeava aos quatro ventos com variações desta frase: "Ele é o
presidente, mas quem manda no governo sou eu". Dirceu e a Casa Civil foram
os guardiões e os fiadores dos acertos e compromissos firmados com políticos
poderosos e grandes empresários. Parte desse enorme poder encarnado por Dirceu
na Casa Civil foi passada a seus sucessores na pasta. Com o poder, tornou-se
hereditário também o hábito de o titular usar o ministério como balcão de negócios
e, uma vez fora, lançar mão de sua influência junto a quem ficou para continuar
operando.
Qualquer negociação estratégica
com o setor produtivo e o Congresso passa necessariamente pela Casa Civil, que,
com mais ou menos delegação, dependendo da circunstância, representa a vontade
do presidente na definição de obras de infraestrutura, liberação de linhas de
crédito em bancos oficiais, vetos e indicações para os mais altos cargos da
administração pública. Dos seis ministros que assumiram a Casa Civil nos últimos
doze anos, três nutriram o sonho de chegar à Presidência. Dilma Rousseff
conseguiu, José Dirceu e Antonio Palocci foram abatidos em pleno voo, e Aloizio
Mercadante, o atual ministro, mesmo no alvo do fogo amigo, mantém-se firme no
curso.
Mas com o poder costuma vir o
abuso do poder, e não é surpresa para ninguém que a Polícia Federal e o
Ministério Público estejam investigando o enriquecimento dos antigos ocupantes
do superministério. Se falhou na política, Dirceu - o "guerreiro do povo
brasileiro", "o revolucionário socialista" - prosperou como
consultor. Só das empresas investigadas no escândalo da Petrobras recebeu mais
de 10 milhões de reais. O ex-ministro Antonio Palocci, que assumiu o posto no
início do governo Dilma, também enriqueceu sem precisar de muito esforço.
Descobre-se agora que até mesmo a mais discreta, a mais humilde e a
aparentemente mais despretensiosa ocupante do cargo, a ex-ministra Erenice
Guerra, também carimbou seu passaporte vermelho para esse seleto clube de
milionários.
Há duas semanas, a Polícia
Federal e o Ministério Público deflagraram a Operação Zelotes, que tem como
alvo uma quadrilha que vendia facilidades no Conselho Administrativo de
Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda (Carf). Integrado por representantes
do governo e dos contribuintes, o Carf funciona como uma espécie de tribunal em
que pessoas físicas e empresas podem recorrer das multas aplicadas pela Receita
Federal. Atualmente, tramitam no órgão centenas de processos, cujos valores
alcançam quase meio trilhão de reais. Cifras que encheram os olhos - e os
bolsos - de muita gente. A investigação identificou um grupo que, atuando em
parceria, oferecia veredictos favoráveis no conselho em troca de polpudas
propinas ou, nos casos mais sofisticados, uma taxa de sucesso sobre o valor que
eventualmente conseguissem abater dos débitos fiscais das empresas. Estima-se
que eles possam ter causado aos cofres públicos um prejuízo superior a 19
bilhões de reais.
Foram apontados como
participantes do esquema lobistas, advogados e membros do próprio conselho. Até
a semana passada, no entanto, o caso parecia incluir apenas aquela
arraia-miúda da corrupção que costuma florescer à margem da burocracia que
cria dificuldades para vender facilidades. Parecia. VEJA teve acesso a
documentos apreendidos pelos investigadores. Durante a operação, a polícia
recolheu uma procuração que revela que a ex-ministra Erenice Guerra atuava em
parceria com um dos chefes da quadrilha do Carf. Como seus ex-colegas de ministério,
a petista surge mirando ganhos de milhões de reais. Como seus antigos colegas
de ministério, o enredo em direção à fortuna mistura contratos de gaveta,
procurações cruzadas, taxas de sucesso. Assim como os velhos companheiros de
partido, Erenice se rendeu à sedução do dinheiro. A exemplo dos criminosos do
PT, converteu-se da pior maneira possível.
Erenice Guerra nunca chamou
muita atenção, nem dentro nem fora do partido. Funcionária do governo de
Brasília, trabalhou na Secretaria de Segurança Pública. Levava uma vida
modesta, num bairro de classe média de uma cidade-satélite do Distrito Federal.
Com a chegada do PT ao poder, foi indicada para compor o governo de transição,
ocasião em que conheceu e se aproximou de outra burocrata, Dilma Rousseff. E veio
a guinada na carreira. Em 2003, Erenice foi nomeada chefe da consultoria
jurídica do Ministério de Minas e Energia, comandado por Dilma Rousseff. Quando
Dilma assumiu a Casa Civil, a assessora a acompanhou, ocupando o cargo de
secretária executiva, o segundo mais importante da pasta. Em 2010, Dilma deixou
o governo para se candidatar à Presidência, e Erenice, no vácuo da amiga,
tornou-se ela própria a ministra-chefe da Casa Civil. Foi um breve reinado, de
apenas cinco meses, abreviado pelo escândalo no qual ela foi acusada de atuar
em favor dos negócios do marido e do filho. Fora do Planalto, Erenice,
especialista em direito sanitário, abriu um escritório de advocacia.
Instalado numa das áreas mais
nobres de Brasília, o escritório da ex-ministra logo passou a ser ponto de
peregrinação para empresários de diferentes setores com interesses no governo.
Com o acesso, os contatos e a fama que tinha e ainda tem no governo, nada
melhor do que contratá-la para ajudar a solucionar problemas de toda ordem. Os
documentos apreendidos pela polícia põem Erenice no centro do escândalo da
Receita e ajudam a compreender o segredo de Midas. Um deles é um contrato
firmado entre ela e o braço brasileiro da Huawei, gigante chinês da área de
telecomunicações. Erenice se compromete a prestar à companhia "serviços
profissionais relativos à defesa fiscal da contratante no âmbito da
Administração Tributária Federal". Na prática, incumbiu-se de defender os
interesses da Huawei no Carf, o tribunal da Receita no qual agia a quadrilha
especializada em vender decisões. E o mais grave: para garantir o sucesso da
empreitada, a ex-ministra se associou ao advogado José Ricardo da Silva, então
membro do conselho e um dos mais destacados integrantes da quadrilha.
Em valores atualizados, a Huawei
discute no Carf um débito de 705,5 milhões de reais, resultante de cobranças
efetuadas pela Receita Federal. Nos documentos apreendidos, está estabelecido o
prêmio a ser pago a Erenice em caso de êxito: 1,5% do valor que a empresa
deixaria de recolher aos cofres públicos. Admitida a hipótese de a cobrança ser
anulada integralmente, caberiam a ela nada menos que 10 milhões de reais. O
contrato foi acertado em 2013. José Ricardo ocupou o conselho do Carf até
fevereiro do ano passado. Resumindo, Erenice se associou a um conselheiro do
Carf para atuar em favor de uma empresa multada pelo próprio Carf. A relação de
Erenice com José Ricardo fica evidente numa "procuração de gaveta"
também apreendida. E mais: quando estava na Casa Civil, Erenice já dava uma mãozinha
aos planos de José Ricardo de ampliar seus poderes sobre as decisões da
Receita.
Mensagens eletrônicas a que VEJA
teve acesso mostram a ação de Erenice para ajudar o advogado. Numa delas,
encaminhada ao e-mail funcional dela no Palácio do Planalto, José Ricardo
escreve a um irmão da ministra, também advogado, e também sócio na empreitada
junto à Receita. Ele pede a intervenção de Erenice na composição do Carf:
"Segue apresentação da pessoa que lhe falei, apta a ocupar a presidência
do Primeiro Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda". Com a
mensagem, seguiu um anexo com o nome do próprio José Ricardo e de quatro sócios
dele - três dos quais também foram conselheiros do Carf e figuram no rol de
investigados na Operação Zelotes. Erenice, logo após receber o texto do irmão,
responde: "Estou enviando curriculum dos meninos. Bjs".
Eis a receita de sucesso que
leva muita gente em Brasília a construir fortunas de uma hora para outra.
Enquanto estava no governo, Erenice plantava as bases de uma estrutura com a
qual viria a se associar depois, para ganhar dinheiro à custa dos cofres
públicos. E esse é apenas um dos muitos negócios arquitetados no escritório da
ex-ministra, cujos sinais de riqueza são visíveis. A advogada Erenice nada
lembra a companheira Erenice, que hoje mora no bairro mais caro de Brasília,
desfila a bordo de carros importados e enverga roupas de grife e acessórios de
luxo. Sempre que é procurada, a ex-ministra diz que não gosta de jornalistas.
Ela em breve será incluída no rol de investigados da Operação Zelotes - e se
juntará aos colegas que, da Casa Civil, decidiram mergulhar de cabeça e braços
abertos naquilo que juraram um dia combater. José Dirceu, por sinal, foi
intimado na semana passada a prestar esclarecimentos sobre os supostos
contratos de consultoria que sua empresa firmou depois que ele deixou o
Planalto. De 2006 a 2013, o ex-ministro faturou 39 milhões de reais, pagamentos
que continuaram a ser feitos mesmo após ele ter sido preso. Antonio Palocci,
que multiplicou seu patrimônio declarado em vinte vezes, incluindo carros e
imóveis de altíssimo luxo, também está às voltas com o Ministério Público. A
Casa Civil ainda guarda outros segredos.