Rio Real vive um clima de medo.
Moradores acusam policiais de invasões de casas, agressões, tortura,
truculência e até homicídios.
Alexandre Lyrio e Thais Borges –
do CORREIO
Juiz Josemar Dias teria recebido denúncias contra a PM (foto: Mauro Akin Nassor) |
“Eu ando com medo. Tenho mulher,
filha e já percebi que esse pessoal é capaz de tudo”. O relato poderia ser de
muitos moradores de Rio Real, a 202 quilômetros de Salvador, na divisa com
Sergipe. Mas, no caso, é do próprio juiz da cidade, Josemar Dias Cerqueira. Não
é a única autoridade local a andar por aí com receio. “Eu circulo muito e tenho
medo, né? A coisa está saindo do controle”, conta o presidente da Câmara de
Vereadores, Clériston Barbosa.
Se juiz e presidente da Câmara
estão com medo, imagine o restante da população. A razão do temor coletivo está
na atuação da Polícia Militar local, comandada pelo major Florisvaldo Passos
Ribeiro, há dois anos à frente da 6ª Companhia Independente da PM (CIPM), com
sede no município. O major e seus comandados são acusados de promover
espancamentos, torturas, invasões de residências e prisões ilegais. É o que
revelam depoimentos formais e informais coletados pelo juiz e pelo CORREIO.
Vítimas e parentes de vítimas
ouvidas ontem pela reportagem falam em atrocidades cometidas pelo major e sua
tropa que incluem até execuções. Nas contas do juiz, só entre março e maio
deste ano, foram dez assassinatos em circunstâncias “estranhas”, o que reforça
a suspeita da existência de um grupo de extermínio. “É sempre alguém em um
carro ou uma moto que chega, atira e vai embora. Desde que o major assumiu (em
setembro de 2011), isso aumentou muito”, avalia o magistrado, que está há nove
anos na cidade.
Diante dos fatos, juiz,
presidente da Câmara e o próprio prefeito assinaram um ofício enviado ao
Ministério Público (MP) pedindo investigação dos fatos. O problema é que Rio
Real está sem promotor titular há cinco anos. “Eu não posso tomar nenhuma
decisão se não for provocado pelo MP. O promotor é de Alagoinhas e acumula
função. Mas acho que já passou da hora de tomar providências”, explica o
juiz. Diversos documentos semelhantes
foram enviados também à delegacia.
Morte
Um caso é emblemático na cidade:
o assassinato do advogado José Urbano do Nascimento Júnior, 28 anos, morto em
novembro do ano passado. Urbano levou dois tiros em um loteamento. Detalhe: o
crime ocorreu meses depois de ele ter sofrido duas agressões de PMs. “Meu filho
foi chamado de ‘advogadozinho de merda’ pelos policiais. Morreu depois de
reunir as provas contra os agressores e de processar um policial que xingou ele
na internet”, relatou a mãe de Urbano, a professora Maria Lúcia dos Santos.
A presidente da OAB - Seção
Alagoinhas, Maryella Gomes, encaminhou no mês passado um ofício ao juiz para
comunicar “condutas ilícitas” por parte da PM de Rio Real. “Tomamos conhecimento
de ameaças a cidadãos que comparecem às instalações, interferências nas
conversas de advogados e seus clientes com a presença de elementos armados à
paisana.
Viatura na frente da 6ª Companhia da Polícia Militar (CIPM-Rio Real), onde teriam ocorrido torturas e intimidações, segundo relatos coletados pelo juiz Josemar Dias (foto: Mauro Akin Nassor) |
Chegou ao conhecimento que presos
têm sido conduzidos às dependências da PM e submetidos a sessões de pressão
psicológica e física, sendo negada a expedição de guias de corpo de delito”,
diz o ofício. O CORREIO não conseguiu contato com o delegado Antônio Santana.
Núcleo
Segundo diversos relatos, os
crimes que teriam a conivência do major - e muitas vezes sua participação
direta - são praticados principalmente pelo chamado Núcleo de Informação, criado
pelo comandante da 6ª CIPM.
Os policiais do NI circulariam à
paisana, e um dos carros utilizados pelo grupo, um Gol preto com vidros fumê,
ganhou, inclusive, apelido. “É o carro do corte”, revela o juiz. “O que nos
parece é que o major resolveu ser tudo na cidade: policial, prefeito, juiz,
carrasco, tudo ao mesmo tempo”, diz o juiz.
Uma jovem doméstica relatou à
Justiça e ao CORREIO uma dessas ações arbitrárias. Em junho deste ano estava
dormindo na casa de uma amiga quando homens armados invadiram o imóvel,
torturaram ela, a amiga grávida e em um rapaz que estava com elas. “Nele usaram
até saco plástico na cabeça. Bateram em mim e na minha amiga. Rodaram com a
gente no carro e apresentaram drogas e armas na delegacia”, conta. O relato é
semelhante ao que ela deu em audiência ao juiz, como parte do processo que
apura o tal crime de posse de drogas e armas.
“Sistematicamente estou liberando
presos com flagrantes sem nenhuma consistência”, diz o juiz. Há ainda narrações
de agressões por meras infrações de trânsito. “Parei o carro em um lugar
atrapalhando o trânsito. Na abordagem policial estava sem habilitação. Foi o
suficiente para me espancarem e me levarem para a companhia. O próprio
comandante viu tudo e me xingou de vagabundo”, conta o cunhado do presidente da
Câmara de Vereadores, que preferiu não se identificar e admitiu ter dado um soco
no PM durante as agressões.
Há um mês o cunhado do juiz foi
encontrado portando uma arma. Foi preso e confessou o crime. “Não foi liberado
sem antes tomar umas porradas dentro da companhia. Mas esse definitivamente não
é o motivo de nosso pedido de investigação. Denuncio a PM desde o ano passado”,
diz o magistrado, mostrando documentos. Os crimes atribuídos à PM de Rio Real
estão sendo investigados pelo Grupo de Atuação Especial de Combate às
Organizações Criminosas e de Investigações Criminais (Gaeco), do Ministério
Público, desde terça-feira. O MP informou que os promotores não comentariam o
caso.
Oficial se diz surpreso com
denúncias e defende tropa
Comandante da CIPM, major Florisvaldo Ribeiro: acusado de crimes |
Apesar dos relatos de medo da
população de Rio Real, o comandante da 6ª Companhia Independente da Polícia
Militar (CIPM), o major Florisvaldo Ribeiro, disse estar “surpreso” com as
acusações. “Procuramos atender a segurança, mas nada é feito com
arbitrariedade. Mas entendo que o trabalho feito com seriedade pode incomodar as pessoas que praticam atos
ilícitos”. Segundo ele, os crimes de roubo de carga e tráfico de drogas são
frequentes na cidade - e o combate da PM a esse tipo de ação teria motivado as
denúncias. “Tem muita gente infiltrada na alta sociedade envolvida”.
O comandante garante que os 96
homens da 6ª CIPM não cometem excessos. Para ele, também não há possibilidade
de os PMs agirem sem o seu conhecimento. “Conheço o perfil da tropa e eles são
tranquilos. Isso é fruto de imaginação, uma forma vingativa para desgastar o comando”.
Ele acredita que as prisões dos
cunhados do juiz Josemar Cerqueira e do presidente da Câmara de Vereadores, Clériston
Barbosa, também podem ter motivado algum tipo de perseguição. “Há uns dois
meses, prendemos o cunhado do presidente (da Câmara). Ele desobedeceu a
abordagem e chegou a agredir um policial. Depois, há um mês e meio, foi o
cunhado do juiz, porque ele estava portando uma arma e mirando em um rapaz. Mas
eles foram encaminhados à delegacia e liberados”, comentou.
O major confirmou a existência do
Núcleo de Informação (NI) e também que os policiais trabalham à paisana - no
entanto, hoje, o departamento é chamado de Seção de Missões Especiais (SME). “É
um trabalho de inteligência, de acompanhamento da conduta dos policiais. Eles
trabalham à paisana. São pessoas escolhidas a dedo, para não fazer coisa
errada”. Segundo ele, hoje a SME conta com cinco policiais. Com relação às
denúncias de espancamento e morte do advogado José Urbano Nascimento Júnior,
Ribeiro confirmou que existiu um “atrito” entre o advogado e três PMs, em
janeiro do ano passado.
“Na época, instaurei um inquérito
militar e eles responderam. Os três foram afastados”, disse, referindo-se aos
soldados identificados como Ferreira, Hermes e Valnei. Já a segunda situação,
quando José Urbano foi espancado em julho de 2012, não teria sido cometida por
policiais da 6ª CIPM, mas da Companhia Independente de Policiamento
Especializado (Litoral Norte). “Mas, com relação ao crime (a morte de José
Urbano), tudo está sendo investigado pela Polícia Civil. Não convivíamos muito,
mas nossa relação sempre foi boa”.