O legado controvertido do homem
que, entre um mate e outro, colocou o Uruguai entre os países mais liberais do
continente depois de ficar 14 anos na cadeia
SIMON ROMERO - THE NEW YORK TIMES
- O Estado de S.Paulo, com informações complementares de Janaina Figueiredo, de
O GLOBO.
Jose Mujica, o presidente que optou pela simplicidade |
Alguns líderes mundiais vivem em
palácios. Outros desfrutam de uma vida privilegiada, com um mordomo discreto,
uma frota de iates e uma adega de vinhos com Champagne de safras especiais. E
há também José Mujica, o ex-guerrilheiro que é o atual presidente do Uruguai.
Ele mora numa casa simples nos arredores de Montevidéu sem nenhum empregado.
Como seguranças, tem dois policiais à paisana estacionados numa rua de terra.
Numa declaração à nação, famosa
exportadora de carne de gado, com uma população de 3,3 milhões de habitantes,
Mujica, de 77 anos, recusou a opulenta mansão presidencial de Suárez y Reyes,
com nada menos que 42 funcionários, e preferiu permanecer na casa onde ele e a
esposa vivem há anos, numa pequena fazenda onde plantam crisântemos que vendem
nos mercados locais.
Chega-se à austera habitação de
Mujica depois de percorrer a rodovia O'Higgins, passando por bosques de
limoeiros. Ao assumir a presidência, em 2010, seu patrimônio era de
aproximadamente US$ 1.800 - o valor do fusca 1987 estacionado na garagem.
Jamais usa uma gravata e doa cerca de 90% do salário, em grande parte a um
programa de expansão de moradias para os pobres. Sua atual versão de
radicalismo discreto - uma mudança acentuada em relação aos dias nos quais ele
pegou em armas para tentar derrubar o governo - exemplifica a emergência do
Uruguai como talvez o país mais liberal do ponto de vista social da América
Latina.
Sob o governo de Mujica, que
tomou posse em 2010, o Uruguai chamou a atenção por tentar legalizar a maconha
e o casamento de gays, e ao mesmo tempo implementar uma legislação das mais
abrangentes de toda a região sobre o direito ao aborto, estimulando
consideravelmente a utilização de fontes de energia renovável, como os ventos e
a biomassa. Enquanto a doença afasta o presidente Hugo Chávez da Venezuela do
cenário político, deixando repentinamente o continente sem a figura exagerada
que tanto influenciou a esquerda, o ascetismo praticado por Mujica é um estudo
de contrastes. Segundo ele, para que a democracia funcione devidamente, os
líderes eleitos deveriam se adequar mais à realidade. "Fizemos todo o
possível para tornar a presidência um cargo menos venerado", disse Mujica
depois de preparar o mate para todos na cozinha de sua casa, numa recente
entrevista.
A vida simples do antigo guerrilheiro foi matéria-destaque nos jornais americanos |
Enquanto passava a cuia de mão em
mão, ele admitiu que seu tranquilo estilo presidencial pode parecer inusitado.
No entanto, afirmou que se trata de uma escolha consciente para evitar as
armadilhas do poder e da riqueza. Citando o filósofo romano Sêneca, Mujica
disse: "O pobre não é o homem que tem pouco demais, mas o homem que anseia
por mais". O líder diante frente das mudanças do Uruguai, conhecido por
seus inúmeros detratores e partidários como Pepe, é uma pessoa que poucos
achariam em condições de ascender a essa posição. Antes que Mujica se tornasse
produtor de crisântemos, era um dos líderes dos tupamaros, os guerrilheiros
urbanos que se inspiraram na revolução cubana, realizavam roubos à mão armada a
bancos e sequestros nas ruas de Montevidéu.
Em sua luta contra o Estado
uruguaio, os tupamaros ganharam notoriedade pela violência. O diretor
Constantin Costa-Gavras inspirou-se neles para o seu filme de 1972 Estado de
Sítio, sobre o sequestro e execução, em 1970, de Daniel Mitrione, assessor
americano da polícia uruguaia. Mujica disse que o grupo "tentava por todos
os meios evitar matanças", mas também admitiu eufemisticamente seus
"desvios militares". Uma operação brutal conseguiu por fim dominar os
tupamaros e a polícia capturou Mujica em 1972. Ele passou 14 anos na cadeia,
mais de 10 numa solitária, frequentemente num buraco no chão. Neste período, o
deixaram mais de um ano sem tomar banho, e seus únicos companheiros, contou,
eram uma perereca e os ratos com os quais compartilhava migalhas de pão. Alguns
dos outros tupamaros que ficaram durante anos confinados em solitárias não
tiveram o benefício da companhia de roedores amigos. Um deles, Henry Engler, um
estudante de medicina, sofreu um grave esgotamento mental antes de ser
libertado em 1985. Mujica raramente fala da época que passou na prisão. Sentado
diante de uma mesa no jardim, bebericando o seu mate, ele diz que teve tempo
para refletir. "Aprendi que sempre se pode começar de novo", afirmou.
Ele optou por recomeçar ingressando na política. Eleito deputado, chocou os
funcionários do estacionamento do Parlamento ao chegar a bordo de uma Vespa.
Depois da ascensão da Frente Ampla ao poder em 2004, uma coligação de partidos
de esquerda e de social democratas mais centristas, foi nomeado ministro da
Pecuária, Agricultura e Pesca.
Pepe Mujica em sua chácara |
Antes que Mujica vencesse as
eleições de 2009 por ampla margem, seu adversário, Luis Alberto Lacalle,
menosprezou sua casinha chamando-a de "caverna". Depois disso, Mujica
também provocou uma agitação nos meios políticos do Uruguai vendendo uma
residência presidencial numa estância balneária, por considerá-la "inútil".
As doações o deixam com US$ 800 por mês do seu salário. Como declarou, ele e
sua mulher, Lucia Topolanski, ex-guerrilheira que também foi presa e hoje é
senadora, não precisam de muita coisa para viver. Em uma nova declaração em
2012, Mujica disse que compartilha da propriedade dos bens que antes estavam no
nome da esposa, incluindo a casa e os implementos agrícolas, que contribuem
para aumentar sua renda.
Ele destacou que seu antecessor
da Frente Ampla na presidência, Tabaré Vázquez, também permaneceu na sua casa
(embora Vázquez, oncologista de profissão, more no bairro da classe alta de El
Prado), e José Batlle y Ordóñez, o presidente do início do século 20 que criou
o estado do bem-estar uruguaio, ajudou a forjar uma tradição na qual "não
existe distância entre o presidente e qualquer um dos seus vizinhos". Na
realidade, se há um país na América do Sul em que um presidente pode dirigir um
fusca e viver sem um exército de seguranças será o Uruguai, que figura entre as
nações da região com menos corrupção e menos desigualdade social. Embora a
criminalidade comece a se tornar preocupante, o Uruguai continua um dos países
mais seguros da região.
No entanto, o estilo de governo
do presidente não agrada a todos os cidadãos. A proposta de legalizar a maconha,
particularmente, provocou um violento debate e as pesquisas mostram que a
maioria da população é contrária à medida. Em dezembro, Mujica pediu aos
parlamentares que adiassem a votação sobre a regulação do mercado da maconha,
embora ele pressione para que o projeto de lei seja debatido mais uma vez em
breve. "É uma vergonha ter como presidente um homem como ele", disse
Luz Díaz, uma empregada doméstica aposentada de 78 anos que mora perto de
Mujica e votou nele em 2009. Ela afirmou que não votaria mais nele se tivesse a
chance. "Esse negócio da maconha é um absurdo", acrescentou.
"Pepe deveria voltar a vender suas flores."
As pesquisas mostram que seus
índices de aprovação estão caindo, mas Mujica diz não se importar. "Não
ligo a mínima", disse, enfatizando que considera "monarquista" a
possibilidade de se reeleger para mandatos consecutivos, proibidos pela
Constituição uruguaia. "Se me preocupasse com as pesquisas, não seria
presidente", afirmou. Faltando dois anos para o fim do mandato, Mujica
parece apreciar a liberdade de falar o que pensa. Quanto às suas crenças
religiosas, disse que ainda está em busca de Deus. Ele lamenta que tantas
sociedades tenham a expansão econômica como prioridade, definindo-a "um
problema para a nossa civilização" em razão das exigências feitas aos
recursos do planeta. (O interessante é que a economia do Uruguai anda crescendo
a uma taxa confortável anual estimada em 3,6%. Quando a cuia de mate ficou
vazia, Mujica desapareceu na cozinha e voltou com um sorriso malicioso e uma
garrafa de Espinillar, uma bebida alcoólica feita com a cana de açúcar. Ainda
não era meio-dia, mas enchemos os copos e brindamos.
Depois disso, o presidente falou
de vários assuntos: antropologia, ciclismo e a paixão dos uruguaios pela carne
bovina. Ele disse que nem sonha em se aposentar, mas espera poder dedicar-se
novamente à agricultura em tempo integral no final do mandato. Finalmente, os
olhos do presidente se iluminaram quando lembrou de um trecho do Dom Quixote,
no qual o cavaleiro andante bebe vinho de um chifre e janta carne de ovelha com
os pastores seus anfitriões, pronunciando um discurso sobre a "peste da
cavalaria". "Os pastores eram as pessoas mais pobres da
Espanha", disse Mujica. "Provavelmente, eram os mais ricos",
acrescentou. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
Candidato divide propriedade com
família que ficou sem casa
Casa onde vive o presidente do Uruguai |
A rua é de terra e a casa, um
pouco precária. No portão de madeira da entrada, os cinco cachorros que moram
no lugar recebem os visitantes com alegria. A mais mimada é Manuela, que perdeu
uma das patas num acidente. Ela é a única que pode entrar na casa e até mesmo
dormir com seus donos, o então candidato à Presidência do Uruguai José
"Pepe" Mujica e a deputada e candidata a senadora na época Lucia
Topolansky. O casal vive numa chácara de 35 hectares, em Rincón del Cerro, a 15
quilômetros de Montevidéu. Às vésperas da eleição, a repórter Janaína
Figueiredo, de O GLOBO, visitou a casa de Mujica, com um pequeno grupo de
jornalistas estrangeiros. Por recomendação dos assessores, o candidato, de 74
anos na época, evitou dar entrevista, mas aceitou mostrar o lugar onde mora há
mais de 20 anos. A chácara é um retrato do ex-guerrilheiro e uma espécie de
refúgio. Mujica e Lucia (que também integrou o movimento tupamaro e esteve 14
anos presa) gostam de plantar flores e verduras. O casal compartilha sua casa
com uma família que há alguns anos enfrentou graves problemas econômicos e, sem
ter onde morar, foi socorrida por Mujica e sua mulher.