Ex-presidente afirma, em livro,
que o ‘PT eleitoreiro’ precisa se reinventar
THIAGO HERDY – de O GLOBO
Lula vê partido como um negócio. (foto: O Globo) |
SÃO PAULO — Para o ex-presidente
Lula, a crise do mensalão foi um “tropeço”, mas, ainda assim, depois de dez
anos no poder, o PT se divide nos dias de hoje entre o “PT da base” e o “PT
eleitoreiro”. O primeiro guarda as mesmas características desde os anos 1980, é
“exigente e solidário”. Já o segundo precisa se reinventar para que a política
não fique “mais pervertida do que já foi em qualquer outro momento”, e para que
o partido seja capaz de estabelecer alianças e coalizões sem precisar
“estabelecer uma relação promíscua”. As declarações estão em entrevista para os
autores do livro “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma”
(R$ 20), que será lançado pela Boitempo Editorial no dia 13 deste mês. Foram
dadas em fevereiro deste ano, já sob o impacto da condenação de alguns dos
principais dirigentes do seu governo pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no
julgamento do mensalão.
“Às vezes tenho a impressão que
partido político é um negócio, quando, na verdade, deveria ser um item
extremamente importante para a sociedade”, admite Lula no depoimento a Pablo
Gentili e ao cientista político Emir Sader, organizador do livro. “O PT precisa
voltar a acreditar em valores que a gente acreditava e que foram banalizados
por conta da disputa eleitoral”, disse o ex-presidente no livro que traz, além
da entrevista, artigos assinados por colaboradores do partido.
Em 384 páginas de balanço, há
apenas uma menção à palavra “mensalão”, e ela vem do próprio ex-presidente, sem
entrar no mérito do esquema condenado recentemente pelo STF, postura adotada
desde quando o escândalo veio à tona. A citação é usada para atacar a mídia,
criticada em um terço das 36 respostas da entrevista.
“Tentaram usar o episódio do
mensalão para acabar com o PT e acabar com o meu governo”, diz o ex-presidente,
que afirma ter vivido "uma situação muito delicada" quando Roberto
Jefferson (PTB) denunciou o esquema. “Tivemos tropeços, é lógico. Muitos tropeços.
O ano de 2005 foi muito complicado. (...) Se não tivéssemos cuidado, não
iríamos discutir mais nada do futuro, só aquilo que a imprensa queria que a
gente discutisse”, afirma Lula, dizendo ter parado de ler jornais para
conseguir manter a tranquilidade em meio à crise.
Na entrevista, o ex-presidente
revela ter sido radicalmente contra a “Carta ao povo brasileiro”, documento
redigido às vésperas das eleições de 2002 em que se comprometia a respeitar
contratos, controlar a inflação e manter o equilíbrio fiscal. “Ela dizia coisas
que eu não queria falar, mas hoje reconheço que ela foi importante”, diz.
Lula conta ter enfrentado
resistência ao nome de Dilma Rousseff como sua sucessora em 2010, mesmo entre
os amigos, apesar de não citá-los. “Eu sei o que eu aguentei de amigos meus,
não eram adversários dizendo: ‘Lula, mas não dá. Ela não tem experiência, ela
não é do ramo’”, conta o ex-presidente, afirmando tê-los convencido sobre a
necessidade de “surpreender a nação com uma novidade”.
Em livro sobre do gestões PT, o mensalão só é citado uma vez. |
O ex-presidente contou ter sido
procurado pelo então senador Antônio Carlos Magalhães (DEM), que buscava apoio
para ser presidente do Senado, apesar de pertencer a um partido de oposição ao
petista. “ACM, eu sempre achei que os presidentes das instituições devessem ser
as pessoas mais fortes. Eu não tenho dúvida que você pode ser um bom
presidente. Agora, eu não tenho como explicar, para minha consciência, o PT
apoiando o Toninho Malvadeza’”, teria dito Lula, fazendo referência ao apelido
do senador baiano e ignorando as alianças com outros antigos opositores, como
com o ex-presidente José Sarney (PMDB-MA), Fernando Collor (PTB-AL) e Paulo
Maluf (PP-SP).
Lula sintetizou o que considera o
êxito do seu mandato em três vertentes: primeiro por mostrar ser “possível
crescer distribuindo renda, sem esperar crescer para distribuir”; “provar que
era possível aumentar salário sem (comprometer o controle da) inflação”; e, por
fim, “aumentar o comércio exterior e o mercado interno sem que isso resultasse
em conflito”.
Intelectual ligado ao PT e crítico
do “neoliberalismo”, Emir Sader assina um dos artigos do livro e trata o
ex-presidente como “enigma Lula”. Apesar do julgamento do Supremo, Sader
minimiza o mensalão, classificando a crise como “resultado de uma ofensiva
opositora, sobredimensionado na mídia, por meio de uma exitosa operação de
marketing político, denúncias políticas”.
Lula - Perguntas e respostas:
O PT mudou?
Existem dois PTs. Um é o PT
congressual, parlamentar, o PT dos dirigentes. E outra coisa é o PT da base. Eu
diria que 90% da base do PT continua igualzinha ao que era em 1980. Ela
continua querendo um partido que não faça aliança política, mas ao mesmo tempo
sabe que, para ganhar, tem que fazer acordos políticos. É uma base muito
exigente, muito solidária e ainda desconhecida de parte da elite brasileira que
conhece o PT superficialmente. O PT é muito forte no movimento social. O PT é
muito forte no interior deste país. E nem sempre essa fortaleza se apresenta na
quantidade de votos. E tem o PT eleitoreiro. E, hoje, ou nós fazemos uma
reforma política e mudamos a lógica da política, ou a política vai virar mais
pervertida do que já foi em qualquer outro momento. É preciso que as pessoas
compreendam que não só a gente deveria ter financiamento público de campanha,
como deveria ser crime inafiançável ter dinheiro privado nas campanhas; que
você precisa fazer o voto por lista, para que a briga se dê internamente no
partido. Você pode fazer um modelo misto — um voto pode ser para a lista, o
outro para o candidato. O que não dá é para continuar do jeito que está.
Sinceramente, não dá para continuar do jeito que está.
Por quê?
A eleição está ficando uma coisa
muito complicada pro Brasil. No mundo inteiro. No Brasil, se o PT não reagir a
isso, poucos partidos estarão dispostos a reagir. Então o PT precisa reagir e
tentar colocar em discussão a reforma política. Eu tentei, quando presidente,
falar de uma Constituinte exclusiva, que é o caminho: eleger pessoas que só vão
fazer a reforma política, que vão lá [para o Congresso], mudam o jogo e depois
vão embora. E daí se convocam eleições para o Congresso. O que não dá é pra
continuar assim. Às vezes tenho a impressão que partido político é um negócio,
quando, na verdade, deveria ser um item extremamente importante para a
sociedade. A sociedade tem que acreditar no partido, tem que participar dos
partidos.
O PT não mudou necessariamente para melhor?
O PT mudou porque aprendeu a
convivência democrática da diversidade; mas, em muitos momentos, o PT cometeu
os mesmos desvios que criticava como coisas totalmente equivocadas nos outros
partidos políticos. E esse é o jogo eleitoral que está colocado: se o político
não tiver dinheiro, não pode ser candidato, não tem como se eleger. Se não
tiver dinheiro para pagar a televisão, ele não faz uma campanha. Enquanto você
é pequeno, ninguém questiona isso. Você começa a ser questionado quando vira
alternativa de poder. Então, o PT precisa saber disso. O PT, quanto mais forte
ele for, mais sério ele tem que ser. Eu não quero ter nenhum preconceito contra
ninguém, mas eu acho que o PT precisa voltar a acreditar em valores que a gente
acreditava e que foram banalizados por conta da disputa eleitoral. É o tipo de
legado que a gente tem que deixar para nossos filhos, nossos netos. E provar
que é possível fazer política com seriedade. Você pode fazer o jogo político,
pode fazer aliança política, pode fazer coalizão política, mas não precisa
estabelecer uma relação promíscua para fazer política. O PT precisa voltar
urgentemente a ter isso como uma tarefa dele e como exercício prático da
democracia. Não tem de voltar a ser sectário como era no começo.
Eu lembro que companheiros meus
perderam seu emprego numa metalúrgica, montaram um bar, mas quiseram entrar no
sindicato e não puderam. “Você não pode entrar porque é patrão”, diziam. O
coitado do cara tinha so um bar! A coitada da minha sogra, a mãe do marido da
Marisa, a mãe do primeiro marido da Marisa (eu sou o único cara que tive três
sogras na vida e uma que não era minha sogra; era sogra da minha mulher, por
conta do ex-marido dela, que eu adotei como sogra), a coitada tinha um
fusquinha 1966 que era herança do marido. E ela ganhava acho que 600 — naquele
tempo era como se fosse um salário-minimo de hoje — de aposentadoria, mas
gostava de andar bem vestida. Ela chegava a reunião do PT e o pessoal falava:
“Já veio a burguesa do Lula”.
Tinha um candidato a vereador que
queria dinheiro para a campanha e eu falei: “Olha, eu não vou pedir dinheiro
para a campanha. Se você quiser, eu te apresento algumas pessoas”. Daí ele
disse: “Não, mas eu não quero conversar com empresário”. Falei: “Então você
quer que um favelado dê dinheiro para a tua campanha?”. Eu já fiz campanha de
cofrinho. Eu já fiz campanha de macacão em palanque. Na campanha de 1982, a
gente ia ao palanque, antes que eu falasse, fazia propaganda das camisas, dos
botons, de tudo que a gente vendia. E a gente vendia na hora e arrecadava o
dinheiro para pagar as despesas daquele comício.