Irena Sendler e Santa Inês: a luta pelo outro e pela liberdade individual (foto\montagem: Landisvalth Lima) |
Dedicado a Ana Dalva
Estou escrevendo meu décimo livro e o primeiro capítulo dele é só uma frase: “Somos uma obra inacabada de Deus!” Está embutida aí a ideia da nossa imperfeição. Se Deus é superior, não somos a sua imagem e perfeição de jeito e maneira. Somos incoerentes acima de tudo. E isso se confirma até na criação dos nossos heróis. Alguém pode me dizer por que Alexandre da Macedônia é considerado herói? Padre Vieira o chamava de um grande ladrão. Como Alexandre, há outros heróis questionáveis ao longo da história. Mas a verdade é que cada nome elevado à condição de herói atende a um status quo de um tempo e de uma época. Nem sempre percebemos nossos personagens heroicos.
Estou escrevendo meu décimo livro e o primeiro capítulo dele é só uma frase: “Somos uma obra inacabada de Deus!” Está embutida aí a ideia da nossa imperfeição. Se Deus é superior, não somos a sua imagem e perfeição de jeito e maneira. Somos incoerentes acima de tudo. E isso se confirma até na criação dos nossos heróis. Alguém pode me dizer por que Alexandre da Macedônia é considerado herói? Padre Vieira o chamava de um grande ladrão. Como Alexandre, há outros heróis questionáveis ao longo da história. Mas a verdade é que cada nome elevado à condição de herói atende a um status quo de um tempo e de uma época. Nem sempre percebemos nossos personagens heroicos.
Um caso reconhecido pela Igreja
Católica é o de Inês de Roma, a Santa Inês. Ela viveu em Roma, onde foi
martirizada em 304. De família nobre, tinha 13 anos quando foi cobiçada, por
sua extraordinária beleza, riqueza e virtude, pelo jovem Fúlvio, filho do
Prefeito de Roma, Semprônio. Como o rejeitou, Inês foi levada a julgamento e
obrigada a manter o fogo sagrado aceso de um templo dedicado à Vesta, deusa
romana do lar e do fogo, o que se recusou a fazer, dizendo: "Se recusei
seu filho, que é um homem vivo, como pode pensar que eu aceite prestar honras a
uma estátua que nada significa para mim? Meu esposo não é desta terra", se
referindo a Jesus. Depois de episódios fantasiosos registrados em vários livros
lendários, por fim Inês foi decapitada a mando do vice-prefeito de Roma,
Aspásio.
Temos certeza de que Santa Inês
não foi a única mulher do planeta a se negar a se submeter a uma imposição da
nobreza de Roma. Ela e tantas outras lutaram, ao longo de séculos, pela
liberdade de fazer com o seu corpo aquilo que lhe aprouver, desde que dentro dos
limites da moralidade, da ética e do respeito ao outro. Ainda hoje as mulheres
lutam, mas não se fala mais em Santa Inês. As heroínas têm outros nomes, que
logo serão esquecidos. A luta pela liberdade do eu é sempre um tema infinito e
explorado. Hoje o tema está diluído no feminismo, na luta dos homossexuais,
trans e periféricos, e também na luta contra o bulling.
E quando a mulher luta a favor do outro? Aí
será difícil virar heroína.
Vou logo direito a um caso que só
fiquei sabendo pela glória do cinema. Viva o Netflix! O nome dela é Irena
Sendler, que faleceu no dia 12 de maio de 2008, aos 98 anos. O Instituto Yad Vashem reconheceu o valor
dessa mulher extraordinária, em 1965, concedendo-lhe o título de "Justo
entre as Nações", mas poucos conheciam sua história até menos de duas
décadas atrás. Em 2000, o silêncio que se formara em volta de seu nome foi
quebrado, quase por acaso, graças ao empenho das alunas de uma escola
secundária de Uniontown, Kansas, nos Estados Unidos: Megan Stewart, Elizabeth
Cambers, Jessica Shelton, de 14 anos, e Sabrina Coons, de 16. Nos primeiros
meses de 2000, decidiram escrever uma peça teatral baseada em sua vida,
intitulada "Life in a Jar", Vida dentro de uma garrafa. E, para
grande surpresa, descobriram que Irena ainda estava viva e bem de saúde, apesar
de presa a uma cadeira de rodas, há anos, por lesões provocadas pelas torturas
que sofreu nas mãos da Gestapo. As jovens entraram em contato com Irena e, a
partir dali, mudaram sua vida.
Irena nasceu em 15 de fevereiro
de 1910, em Otwock, cidade próxima a Varsóvia, filha única do casal
Krzyzanowski. A família sempre manteve estreitas relações com a comunidade
judaica da cidade. O pai, Stanislaw, era médico e entre seus pacientes havia
vários judeus, muito dos quais sem recursos. Ardente socialista, Stanislaw não
cansava de ensinar à pequena Irena que o ato de ajudar devia ser para todo ser
humano uma necessidade que emanasse do coração, não importando se o indivíduo a
ser ajudado era rico ou pobre, nem a que religião ou nacionalidade pertencia.
Em 1917, Otwock foi tomada por uma epidemia de tifo. Stanislaw, fiel aos seus
ideais, não deixou a cidade e continuou socorrendo os doentes. Ele mesmo
contraiu tifo, mas antes de morrer fez uma última recomendação à filha:
"Se vires alguém se afogando, deves pular na água e tentar ajudar, mesmo
se não souberes nadar".
Casou com Mieczyslaw Sendler, com
o qual não teve filhos e passou a trabalhar como assistente social. Quando os
alemães invadiram a Polônia, em setembro de 1939, ela trabalhava no
Departamento de Bem-estar Social de Varsóvia, única organização oficial
polonesa autorizada a atuar no país, além da Cruz Vermelha. Irena era
responsável pela administração dos refeitórios comunitários localizados em cada
distrito da cidade, que, graças a ela, distribuíam, além de alimento, roupas,
medicamentos e algum dinheiro. E, quando se tornou proibido atender os judeus,
ela registrou aqueles que iam pedir ajuda com nomes cristãos, fictícios. Para
evitar visitas de inspeção, colocava nas fichas que na família havia doença
infecciosa, como tifo ou tuberculose.
Na Polônia, a perseguição nazista
aos judeus iniciara-se imediatamente após a invasão. Os alemães sabiam que o
profundo antissemitismo que permeava a sociedade polonesa facilitaria a
execução de seus planos para a comunidade judaica. Em outubro de 1940, a
Gestapo decretou a transferência imediata de todos os judeus de Varsóvia para
um antigo bairro que, em poucos meses, se tornou um gueto no sentido mais
nefasto da palavra. Dentro do gueto, as
condições de vida eram subumanas. As cotas de alimentos eram mínimas, produtos
sanitários e farmacêuticos em quantidade insuficiente. Grande parte da
população sequer tinha abrigo; quem conseguia algum cômodo o partilhava, com
mais 10 pessoas. Além das execuções sumárias, os nazistas queriam matar os
judeus de fome, frio e doenças. Entre o início de 1940 e meados de 1942, uns 83
mil morreram.
Com o passar dos meses, as
condições de vida no gueto se tornaram ainda mais terríveis. Sabe-se que a
partir de junho de 1941 o número mensal de mortes chegou a 5 mil. Irena estava
definitivamente convencida de que a única forma de salvar alguém daquele
inferno era ajudando-o a fugir. Passa, então, a trabalhar na organização das
fugas. Os primeiros a serem retirados foram as crianças órfãs. Em julho de
1942, os nazistas iniciaram a deportação em massa para o campo de Treblinka.
Tornara-se ainda mais premente remover do gueto o maior número possível de
pessoas. Irena já estava de posse de uma lista de endereços onde os judeus
poderiam ficar, principalmente as crianças, até conseguir documentos de
identidade "arianos" e encontrar um lugar onde viver em relativa
segurança. Sendler e Schultz conseguiram 3 mil documentos falsos.
Como as deportações continuavam
sem tréguas, Irena decidiu procurar ajuda e se filiou à Zegota, movimento
clandestino com a infraestrutura e o dinheiro necessários. Esta organização,
que contava com o apoio financeiro de judeus britânicos, foi criada naquele
fatídico mês de julho por poloneses católicos, muitos, entre eles, membros da
resistência, que se opunham ao extermínio em massa de judeus. Usando o codinome Jolanta, Irena se tornou uma
das principais ativistas da Zegota. Comandava uma equipe de 25 pessoas
incumbidas de tirar crianças do gueto, obter documentos falsos e encontrar uma
família ou local onde as abrigar - algo não tão fácil de conseguir. Durante os
últimos três meses antes da liquidação do gueto, lutando contra o tempo,
Sendler e uma sua amiga, Schultz, retiraram 2.500 crianças. Alguns eram
escondidos dentro de ambulâncias. Crianças pequenas eram sedadas para não fazer
barulho. Nas mãos de Irena qualquer coisa se transformava em instrumento de
fuga: sacolas, latas de lixo, sacos de batatas, caixões. Chegou a esconder
algumas dentro de seu casaco! Já fora dos muros, as crianças eram levadas para
locais onde iam ficar até serem entregues a famílias ou instituições religiosas
confiáveis.
Irena Sendler em 2006 |
A guerra acabou e esqueceram a
luta de Irena. Tanto tempo depois, aquelas quatro meninas resolveram remexer a
história. Irena rememora o momento em que soube do projeto das jovens:
"Fiquei boquiaberta e fascinada, a um só tempo; interessada, muito
feliz". Em uma das primeiras cartas de Irena às jovens, escreveu:
"Minha emoção está sendo ofuscada pelo fato de que ninguém do meu círculo
de colaboradores, que viviam arriscando suas vidas, pôde viver o bastante para
desfrutar todas as honras que hoje recaem sobre minha pessoa... Não encontro
palavras para lhes agradecer, minhas queridas meninas... Antes de vocês
escreverem a peça "Life in a Jar", ninguém em meu próprio país e em
todo o mundo se havia preocupado com minha pessoa ou com o trabalho que
desempenhei durante a guerra...".
Reparem que o próprio país não a
havia descoberto. Foram estudantes americanas! Em maio de 2001, as 4 jovens,
acompanhadas do professor Conrad, viajaram a Varsóvia para se encontrar com Irena.
Na mesma época, a mídia internacional começa a divulgar sua história.
Emocionada, Irena diz às jovens que elas eram "as resgatadoras da história
de Irena perante o mundo". Ao publicar a história, vários jornais
colocaram uma antiga foto dela. De repente, diversas pessoas a contataram:
"Lembro-me de seu rosto... sou uma daquelas crianças, devo-lhe a minha
vida e meu futuro, preciso vê-la!" No ano de 2003, Irena Sendler recebeu
uma carta do papa João Paulo II. Em março daquele ano foi a vez da Polônia
fazer reparações oficiais. Irena é agraciada com a Ordem da Águia Branca, a
mais importante distinção concedida pelo governo daquele país. No ano seguinte
foi publicado um livro sobre sua vida escrito por Anna Mieszkowska: Mother of
the Children of the Holocaust: The Irena Sendler Story. Ela também foi indicada
ao Prêmio Nobel da Paz, mas perdeu para o político americano Al Gore. No ano em que celebrou 98 anos, recebeu das jovens de Kansas
a notícia de que a peça sobre sua vida fora representada pela 254ª. vez, em
Toronto, Canadá. Ela sempre disse que poderia ter feito muito mais. Ela não se
conforma de não ter salvo todas as crianças do gueto. Nunca reclamou seu
reconhecimento e nem lamentou ter sido torturada. Irena pensava sempre no
outro. Talvez seja este o tipo de heroísmo de que o mundo esteja precisando.
(Com a colaboração do portal Morashá e do Wikipédia)