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Neópolis - Cidades do Velho Chico - 31

O heroísmo de servir ao outro

Irena Sendler e Santa Inês: a luta pelo outro e pela liberdade individual
(foto\montagem: Landisvalth Lima)
                                           Dedicado a Ana Dalva

     Estou escrevendo meu décimo livro e o primeiro capítulo dele é só uma frase: “Somos uma obra inacabada de Deus!” Está embutida aí a ideia da nossa imperfeição. Se Deus é superior, não somos a sua imagem e perfeição de jeito e maneira.  Somos incoerentes acima de tudo. E isso se confirma até na criação dos nossos heróis. Alguém pode me dizer por que Alexandre da Macedônia é considerado herói? Padre Vieira o chamava de um grande ladrão. Como Alexandre, há outros heróis questionáveis ao longo da história. Mas a verdade é que cada nome elevado à condição de herói atende a um status quo de um tempo e de uma época. Nem sempre percebemos nossos personagens heroicos.
Um caso reconhecido pela Igreja Católica é o de Inês de Roma, a Santa Inês. Ela viveu em Roma, onde foi martirizada em 304. De família nobre, tinha 13 anos quando foi cobiçada, por sua extraordinária beleza, riqueza e virtude, pelo jovem Fúlvio, filho do Prefeito de Roma, Semprônio. Como o rejeitou, Inês foi levada a julgamento e obrigada a manter o fogo sagrado aceso de um templo dedicado à Vesta, deusa romana do lar e do fogo, o que se recusou a fazer, dizendo: "Se recusei seu filho, que é um homem vivo, como pode pensar que eu aceite prestar honras a uma estátua que nada significa para mim? Meu esposo não é desta terra", se referindo a Jesus. Depois de episódios fantasiosos registrados em vários livros lendários, por fim Inês foi decapitada a mando do vice-prefeito de Roma, Aspásio.
Temos certeza de que Santa Inês não foi a única mulher do planeta a se negar a se submeter a uma imposição da nobreza de Roma. Ela e tantas outras lutaram, ao longo de séculos, pela liberdade de fazer com o seu corpo aquilo que lhe aprouver, desde que dentro dos limites da moralidade, da ética e do respeito ao outro. Ainda hoje as mulheres lutam, mas não se fala mais em Santa Inês. As heroínas têm outros nomes, que logo serão esquecidos. A luta pela liberdade do eu é sempre um tema infinito e explorado. Hoje o tema está diluído no feminismo, na luta dos homossexuais, trans e periféricos, e também na luta contra o bulling.  
 E quando a mulher luta a favor do outro? Aí será difícil virar heroína.
Vou logo direito a um caso que só fiquei sabendo pela glória do cinema. Viva o Netflix! O nome dela é Irena Sendler, que faleceu no dia 12 de maio de 2008, aos 98 anos.  O Instituto Yad Vashem reconheceu o valor dessa mulher extraordinária, em 1965, concedendo-lhe o título de "Justo entre as Nações", mas poucos conheciam sua história até menos de duas décadas atrás. Em 2000, o silêncio que se formara em volta de seu nome foi quebrado, quase por acaso, graças ao empenho das alunas de uma escola secundária de Uniontown, Kansas, nos Estados Unidos: Megan Stewart, Elizabeth Cambers, Jessica Shelton, de 14 anos, e Sabrina Coons, de 16. Nos primeiros meses de 2000, decidiram escrever uma peça teatral baseada em sua vida, intitulada "Life in a Jar", Vida dentro de uma garrafa. E, para grande surpresa, descobriram que Irena ainda estava viva e bem de saúde, apesar de presa a uma cadeira de rodas, há anos, por lesões provocadas pelas torturas que sofreu nas mãos da Gestapo. As jovens entraram em contato com Irena e, a partir dali, mudaram sua vida.
Irena nasceu em 15 de fevereiro de 1910, em Otwock, cidade próxima a Varsóvia, filha única do casal Krzyzanowski. A família sempre manteve estreitas relações com a comunidade judaica da cidade. O pai, Stanislaw, era médico e entre seus pacientes havia vários judeus, muito dos quais sem recursos. Ardente socialista, Stanislaw não cansava de ensinar à pequena Irena que o ato de ajudar devia ser para todo ser humano uma necessidade que emanasse do coração, não importando se o indivíduo a ser ajudado era rico ou pobre, nem a que religião ou nacionalidade pertencia. Em 1917, Otwock foi tomada por uma epidemia de tifo. Stanislaw, fiel aos seus ideais, não deixou a cidade e continuou socorrendo os doentes. Ele mesmo contraiu tifo, mas antes de morrer fez uma última recomendação à filha: "Se vires alguém se afogando, deves pular na água e tentar ajudar, mesmo se não souberes nadar".
Casou com Mieczyslaw Sendler, com o qual não teve filhos e passou a trabalhar como assistente social. Quando os alemães invadiram a Polônia, em setembro de 1939, ela trabalhava no Departamento de Bem-estar Social de Varsóvia, única organização oficial polonesa autorizada a atuar no país, além da Cruz Vermelha. Irena era responsável pela administração dos refeitórios comunitários localizados em cada distrito da cidade, que, graças a ela, distribuíam, além de alimento, roupas, medicamentos e algum dinheiro. E, quando se tornou proibido atender os judeus, ela registrou aqueles que iam pedir ajuda com nomes cristãos, fictícios. Para evitar visitas de inspeção, colocava nas fichas que na família havia doença infecciosa, como tifo ou tuberculose.
Na Polônia, a perseguição nazista aos judeus iniciara-se imediatamente após a invasão. Os alemães sabiam que o profundo antissemitismo que permeava a sociedade polonesa facilitaria a execução de seus planos para a comunidade judaica. Em outubro de 1940, a Gestapo decretou a transferência imediata de todos os judeus de Varsóvia para um antigo bairro que, em poucos meses, se tornou um gueto no sentido mais nefasto da palavra.  Dentro do gueto, as condições de vida eram subumanas. As cotas de alimentos eram mínimas, produtos sanitários e farmacêuticos em quantidade insuficiente. Grande parte da população sequer tinha abrigo; quem conseguia algum cômodo o partilhava, com mais 10 pessoas. Além das execuções sumárias, os nazistas queriam matar os judeus de fome, frio e doenças. Entre o início de 1940 e meados de 1942, uns 83 mil morreram.
Com o passar dos meses, as condições de vida no gueto se tornaram ainda mais terríveis. Sabe-se que a partir de junho de 1941 o número mensal de mortes chegou a 5 mil. Irena estava definitivamente convencida de que a única forma de salvar alguém daquele inferno era ajudando-o a fugir. Passa, então, a trabalhar na organização das fugas. Os primeiros a serem retirados foram as crianças órfãs. Em julho de 1942, os nazistas iniciaram a deportação em massa para o campo de Treblinka. Tornara-se ainda mais premente remover do gueto o maior número possível de pessoas. Irena já estava de posse de uma lista de endereços onde os judeus poderiam ficar, principalmente as crianças, até conseguir documentos de identidade "arianos" e encontrar um lugar onde viver em relativa segurança. Sendler e Schultz conseguiram 3 mil documentos falsos.
Como as deportações continuavam sem tréguas, Irena decidiu procurar ajuda e se filiou à Zegota, movimento clandestino com a infraestrutura e o dinheiro necessários. Esta organização, que contava com o apoio financeiro de judeus britânicos, foi criada naquele fatídico mês de julho por poloneses católicos, muitos, entre eles, membros da resistência, que se opunham ao extermínio em massa de judeus.  Usando o codinome Jolanta, Irena se tornou uma das principais ativistas da Zegota. Comandava uma equipe de 25 pessoas incumbidas de tirar crianças do gueto, obter documentos falsos e encontrar uma família ou local onde as abrigar - algo não tão fácil de conseguir. Durante os últimos três meses antes da liquidação do gueto, lutando contra o tempo, Sendler e uma sua amiga, Schultz, retiraram 2.500 crianças. Alguns eram escondidos dentro de ambulâncias. Crianças pequenas eram sedadas para não fazer barulho. Nas mãos de Irena qualquer coisa se transformava em instrumento de fuga: sacolas, latas de lixo, sacos de batatas, caixões. Chegou a esconder algumas dentro de seu casaco! Já fora dos muros, as crianças eram levadas para locais onde iam ficar até serem entregues a famílias ou instituições religiosas confiáveis.
Irena Sendler em 2006
No dia 20 de outubro de 1943, Irena foi à casa de sua mãe para uma reunião de amigos. No final da tarde, a Gestapo invadiu o local. Por sorte, ajudada por uma amiga, ela conseguira esconder documentos que a incriminavam e uma grande quantia do Zegota destinada à ajuda aos judeus. A busca durou três horas. Não encontraram nada, mas Irena foi presa e levada à terrível prisão de Pawiak. Uma de suas colaboradoras havia sido presa e, sob tortura, revelara seu nome. O alemão que a interrogou era jovem, com boas maneiras e falava perfeitamente o polonês. Queria os nomes da liderança do Zegota, endereços e a relação de todos os envolvidos. Apesar de brutalmente torturada - quebraram-lhe as duas pernas - ela não cedeu.  Um dia, Irena estava sendo levada para o local onde devia ser fuzilada quando um agente da Gestapo surgiu com a ordem de conduzi-la a outro interrogatório. O Zegota conseguira subornar o agente minutos antes da execução; após conduzi-la a um canto, o nazista mandou-a desaparecer. Estava livre. Na mesma noite, Irena viu cartazes, nos muros de Varsóvia, com o nome das pessoas executadas. Entre eles, constava o seu. A Gestapo não tardou a descobrir o que ocorrera; isto forçou Irena a viver escondida, sob falsa identidade, até a libertação da Polônia pelos exércitos russos - exatamente como tantos outros a quem salvara. Mas, mesmo perseguida pela Gestapo, continuou a atuar.
A guerra acabou e esqueceram a luta de Irena. Tanto tempo depois, aquelas quatro meninas resolveram remexer a história. Irena rememora o momento em que soube do projeto das jovens: "Fiquei boquiaberta e fascinada, a um só tempo; interessada, muito feliz". Em uma das primeiras cartas de Irena às jovens, escreveu: "Minha emoção está sendo ofuscada pelo fato de que ninguém do meu círculo de colaboradores, que viviam arriscando suas vidas, pôde viver o bastante para desfrutar todas as honras que hoje recaem sobre minha pessoa... Não encontro palavras para lhes agradecer, minhas queridas meninas... Antes de vocês escreverem a peça "Life in a Jar", ninguém em meu próprio país e em todo o mundo se havia preocupado com minha pessoa ou com o trabalho que desempenhei durante a guerra...".
Reparem que o próprio país não a havia descoberto. Foram estudantes americanas! Em maio de 2001, as 4 jovens, acompanhadas do professor Conrad, viajaram a Varsóvia para se encontrar com Irena. Na mesma época, a mídia internacional começa a divulgar sua história. Emocionada, Irena diz às jovens que elas eram "as resgatadoras da história de Irena perante o mundo". Ao publicar a história, vários jornais colocaram uma antiga foto dela. De repente, diversas pessoas a contataram: "Lembro-me de seu rosto... sou uma daquelas crianças, devo-lhe a minha vida e meu futuro, preciso vê-la!" No ano de 2003, Irena Sendler recebeu uma carta do papa João Paulo II. Em março daquele ano foi a vez da Polônia fazer reparações oficiais. Irena é agraciada com a Ordem da Águia Branca, a mais importante distinção concedida pelo governo daquele país. No ano seguinte foi publicado um livro sobre sua vida escrito por Anna Mieszkowska: Mother of the Children of the Holocaust: The Irena Sendler Story. Ela também foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz, mas perdeu para o político americano Al Gore. No ano em que celebrou 98 anos, recebeu das jovens de Kansas a notícia de que a peça sobre sua vida fora representada pela 254ª. vez, em Toronto, Canadá. Ela sempre disse que poderia ter feito muito mais. Ela não se conforma de não ter salvo todas as crianças do gueto. Nunca reclamou seu reconhecimento e nem lamentou ter sido torturada. Irena pensava sempre no outro. Talvez seja este o tipo de heroísmo de que o mundo esteja precisando. 
(Com a colaboração do portal Morashá e do Wikipédia)