Ícaro Luis tornou-se ícone do sistema; aprovado em concurso para o
Programa de Saúde da Família, já tem emprego garantido
Ícaro entrou na Ufba em 2005 |
Em uma casa azul na Ladeira Manoel Faustino - mesmo nome de um dos
líderes negros da Revolta dos Alfaiates, que em 2011 se tornou Herói da Pátria – Ícaro Luis Vidal,
24 anos, se apronta para o grande dia de sua vida. À noite, o primeiro
estudante a ingressar pelo sistema de cotas no curso de Medicina da
Universidade Federal da Bahia (Ufba) se forma.
As trancinhas que a cabeleireira faz em seu black power têm dois
motivos: um é poder vestir o capelo de formatura (chapéu usado na solenidade).
O outro é a pressão de sua mãe, Raimunda Vidal dos Santos, 47, que acha que
assim o filho fica mais bonito para a festa, realizada ontem à noite, no Centro
de Convenções.
Ícaro começou o curso em 2005, quando a Ufba implantou o sistema de
cotas. Hoje, a instituição reserva 2% das vagas para índio-descendentes e 43%
para alunos que tenham todo o ensino médio em escolas públicas. Desses, 85% são
para estudantes que se declararam pardos ou pretos.
Ao fim do 3º ano no Colégio da Polícia Militar, conciliado com o
cursinho, Ícaro já tinha passado no meio do ano em Direito na Universidade
Estadual de Feira de Santana (Uefs). “Assim, eu fiz a prova mais tranquilo”.
Amiga de infância, Inês Costal, 24, lembra dele como aluno aplicado. “Sempre
foi brilhante, era o CDF”, relata.
Orgulho
Ícaro atribui o desempenho à sua criação. “Ele nunca me deu trabalho,
mas sempre cobrei. A média do colégio era 8, mas eu exigia 9”, lembra a mãe. O rigor deu resultado.
“Tenho orgulho dos meus filhos”, afirma ela, incluindo a filha Ísis Carine dos
Santos, 25, que mês que vem se forma em Engenharia Química, também na Ufba. Ontem,
na formatura, dona Raimunda via o sonho realizado e vibrava num longo rosa.
“Dever cumprido. Agora vou cuidar de mim”, diz ela, que este ano vai tentar
cursar Pedagogia. “Espero conseguir uma vaga pelo Enem”, torce. Ícaro divide
com ela e com Ísis uma casa na Liberdade. O pai, que mora em Feira de Santana,
também veio para a formatura. Uma outra irmã mora em Conceição de Feira.
Desafios
O sonho de Medicina surgiu cedo. Ao ver crescer a barriga de três tias
que engravidaram na mesma época, a cabeça do menino de 6 anos se encheu de
perguntas. “Queria saber como tinha entrado, como saía”, lembra. Com o tempo,
esqueceu a obstetrícia: agora quer ser oncologista. “Conviver com esses
pacientes, tão carentes de atenção, me despertou para a área. O câncer é uma
doença que isola”, reflete. Se os pacientes sofrem, Ícaro também passou
perrengues. Nos dois primeiros anos, além de cursar a faculdade, trabalhava e
fazia curso técnico em Química, no Instituto Federal da Bahia (Ifba, então
Cefet), que lhe possibilitou ser perito técnico da Polícia Civil. O rapaz só
chegava em casa às 23h e ainda tinha que estudar até as 2h. Várias vezes acabou dormindo em cima dos
livros. “Mas nunca repeti nenhuma matéria”, orgulha-se. O grande impacto na
Ufba foi o grau de dificuldade. “A cota facilita a entrada, mas sair depende de
você”, analisa. Hoje, Dr. Ícaro está encaminhado: passou em um concurso para médico do Programa
Saúde da Família (PSF). E quer mais. “Quando vi a equipe do (Hospital)
Sírio-Libanês que cuidou de Lula falando com os repórteres, pensei: um dia eu é
que vou estar aí”.
Projeto propõe cotas obrigatórias
Mesmo com tantas universidades no país adotando cotas, não há uma lei
federal que determine regras ou obrigue as instituições a aderirem ao sistema.
As universidades têm autonomia para decidir quantas vagas destinarão às cotas e
se o critério será socioeconômico ou étnico. Um Projeto de Lei (71/99) sobre o
tema já foi aprovado na Câmara e desde 2008 aguarda para ser votado no Senado.
Segundo a proposta, apresentada em 1999 pela então deputada federal Nice Lobão
(PFL-MA), as universidades públicas federais reservariam vagas para estudantes
que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, tenham
renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo e sejam negros, pardos ou
indígenas.
No Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Ricardo Lewandowski relata
duas ações contra cotas para negros. A primeira foi ajuizada pelo DEM contra a
Universidade Federal de Brasília (UnB), onde
uma comissão decide por foto ou entrevista quem pode ser classificado
como negro, pardo ou branco. A outra foi
proposta em maio por um estudante que
não foi aprovado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Há ainda
no STF mais três ações sobre o sistema de cotas adotado pelo ProUni. Os
processos estão na pauta de votação desse ano.
Reportagem de Luana Ribeiro com foto de Almiro Lopes – do CORREIO.