Gravações revelam que o esquema
de Carlinhos Cachoeira recebia proteção do governo de Goiás. Assessores do
governador Marconi Perillo antecipavam operações policiais para o bicheiro
Claudio Dantas Sequeira – da revista
ISTOÉ
RELAÇÕES PERIGOSAS Cachoeria (abaixo) indicava auxiliares de Perillo (acima) e assim influenciava setores estratégicos do governo |
A organização criminosa montada
pelo bicheiro Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira, revela-se
aos poucos muito mais ampla do que se pensava. Após a derrocada do senador
Demóstenes Torres, que foi obrigado a abandonar o DEM e corre o risco de perder
o mandato por suas ligações com Cachoeira, o dilúvio de informações que constam
no inquérito da Operação Monte Carlo chega ao governador de Goiás, Marconi
Perillo (PSDB). De acordo com a PF, pessoas ligadas diretamente a Perillo
vazaram previamente a Cachoeira informações sigilosas sobre ações policiais,
permitindo ao bicheiro se antecipar a operações de repressão à jogatina. Além
disso, o monitoramento de Cachoeira também identificou laços estreitos com
políticos e empresários e sua influência na nomeação de dezenas de pessoas para
ocupar funções públicas no governo de Goiás.
PROTOCOLAR O presidente do PSDB, Sérgio Guerra, teve que vira público fazer uma defesa do governador Perillo |
Em diálogo gravado pela PF,
obtido com exclusividade por ISTOÉ, Carlinhos Cachoeira pede ao ex-presidente
da Câmara Municipal de Goiânia Wladimir Garcez, apontado pela PF como
arrecadador de campanha de Perillo, informações sigilosas sobre ações do grupo
tático (GT3), a unidade de elite da Polícia Civil local. Wladimir, então, promete
apurar com o corregedor-geral de Segurança Pública do Estado, Aredes Correio
Pires, e com “Edmundo”, que a PF identifica como o delegado Edemundo Dias
Filho, também tesoureiro do PSDB de Goiás. “Vai lá no Aredes pra ver o que que
tá acontecendo”, ordena Cachoeira, a quem Wladimir se refere como “chefe”. “É,
tô indo aqui do Edmundo. Já tô chegando aqui. Vou ligar pro Aredes.” Horas
depois, Wladimir retorna com a informação sobre uma atuação policial na região
de Valparaíso, no entorno de Goiás. “Não. Tava previsto só essa ação e uma em
Val. Ele vai ver, mas não tem nada previsto mais, não. Mas ele vai confirmar
isso para mim agora. Só tava previsto isso... essa aí e... GT3 não tá mais
previsto pra lá, não em nenhuma ação”.
Numa outra conversa, Wladimir
descreve para Cachoeira um diálogo que manteve com Aredes Pires, em que o
corregedor de Segurança Pública fala no “governador” ao tratar de um “processo
do Edmundo”. “É o seguinte: eu tava com o Aredes aqui, agora, ficamos um
tempão. Ele tá tentando pegar os locais pra gente na inteligência agora”, disse
Wladimir Garcez. “Aí eu perguntei pra ele o negócio da... o Edmundo. O Edmundo
não tá preocupado com isso, não? Ele falou: ‘Não, tá nem um pouco preocupado’.
O governador disse que ia resolver para ele. Tá confiando no governador.”
Cachoeira pede então ao
ex-vereador que determine a Edemundo Dias Filho a transferência de
responsabilidade sobre as operações de repressão ao jogo do GT3 para a Força
Nacional. “Liga no celular do Edmundo, rapaz. Vai lá na casa dele”, manda
Cachoeira. Em seguida, Cachoeira fala com o próprio corregedor sobre as ações
da polícia no combate ao jogo ilegal. Falando como quem tivesse prestando
contas, Aredes tenta tranquilizar o contraventor. “Eu tenho que conversar com o
pessoal da inteligência de lá. Lá tem um grupo grande que tava fazendo o
serviço. Mas num tá previsto pra esse final de semana, não tá”. O chefe da
Polícia Civil e tesoureiro tucano negam qualquer relação com o bicheiro. Na
análise dos áudios, a PF indica que Cachoeira pagava regularmente aos integrantes
do governo Marconi Perillo “para ter acesso a informações de interesse
financeiro ou político da organização criminosa”. Além de Aredes, outro chefe
da segurança em Goiás comprovadamente envolvido é o coronel Massatoshi Sérgio
Katayama, o “Japão”, comandante da PM. Nos diálogos gravados pela PF, o
auxiliar de Katayama, conhecido como Ananias, chamava Cachoeira de “chefe”, a
exemplo de Wladimir. O empresário do jogo também exercia influência sobre a
Secretaria de Indústria de Comércio, onde trabalhariam seis parentes de
Cachoeira e do ex-presidente da Câmara Municipal. O presidente do Detran
goiano, Edivaldo Cardoso, também é citado no inquérito da operação.
Segundo os investigadores,
Wladimir Garcez, que também explorava máquinas caça-níqueis, mantinha contato
frequente com Perillo, tendo trocado dezenas de torpedos pelo celular com o
governador. Ele até ajudou na coordenação da campanha de 2010, quando teria
atuado como um dos arrecadadores. O próprio Perillo, na quarta-feira 4, admite
que vendeu a mansão onde morava para o ex-vereador e que este a repassou a um
empresário, que, por sua vez, emprestou a casa justamente para Cachoeira. “Não
sabia que Cachoeira estava morando lá”, alegou Perillo. O governador disse que
suas relações com o bicheiro eram apenas “esporádicas”. Lembrou que esteve com
ele em “um aniversário e dois jantares” e acreditava que Carlinhos “havia
abandonado a contravenção”. Durante a semana passada, o governador começou a
mobilizar sua defesa com advogados e uma tropa de especialistas em comunicação.
A turma foi engrossada pelo presidente do PSDB, Sérgio Guerra, que teve que
emitir uma nota e defesa de Perillo.
Mesmo negando qualquer relação
com o esquema do jogo, Perillo não conseguiu explicar por que o bicheiro e sua
chefe de gabinete, Eliane Pinheiro, mantinham comunicação frequente. A PF, em
seu relatório, revela que ambos trocaram uma série de telefonemas e mensagens
de texto por celular. Cachoeira teria dado a Eliane detalhes dos alvos da
Operação Apate, que investigou em 2011 supostas fraudes tributárias em prefeituras
do interior goiano.
Segundo a PF, a chefe de
gabinete alertou o prefeito Geraldo Messias (PP), de Águas Lindas de Goiás, que
é aliado de Perillo. Dessa maneira, de acordo com o Ministério Público Federal,
Cachoeira causou “prejuízo à administração pública ao passar informação de que
haveria operação de busca na casa do prefeito”. Nas conversas, o bicheiro
indaga Eliane. “Falou com o maior?”, e ela responde: “Falei, estou com ele
aqui. Tá aqui. Imagina como que tava.” Eliane também usou um rádio Nextel com
uma linha habilitada nos EUA, assim como o senador Demóstenes Torres. A turma
de Cachoeira acreditava que os aparelhos eram imunes aos grampos da PF. Na
terça-feira 3, Eliane pediu demissão do cargo. Na carta, disse que foi
confundida pela PF com “outra Eliane”. “Injustamente fui vítima de um grande
equívoco. Não tenho nada a temer”, escreveu. Antes, no entanto, disse que se
lembrava das mensagens de Carlinhos Cachoeira e que avisou Geraldo Messias por
“amizade”. “Eu queria falar para o Geraldo Messias tirar os filhos de casa
porque haveria uma operação lá”, disse.
A ex-chefe de gabinete cuidava
da agenda de Marconi Perillo, atividade que exercia desde o governo passado.
Ainda na gestão de Alcides Rodrigues (PP), antecessor de Perillo, ela atuou na
articulação do tucano para que prefeitos do PP apoiassem a campanha de Marconi
ao governo estadual. Eliane Pinheiro afirmou que foi apresentada a Cachoeira em
2003 pelo ex-chefe Fernando Cunha, secretário de Assuntos Estratégicos, morto
no ano passado. Uma filha de Cunha é casada com um dos irmãos de Cachoeira.
Esse tipo de relação familiar, aliás, se repete no esquema Cachoeira. O
bicheiro casou-se com a ex-mulher do suplente do senador Demóstenes Torres, o
empresário Wilder Pedro de Morais, que vem a ser secretário de Infraestrutura
do governo de Marconi Perillo.
A partir de conversas mantidas
entre o bicheiro e o senador Demóstenes Torres, a Polícia Federal firmou a
convicção de que Cachoeira pretendia ampliar seus negócios para além das
fronteiras de Goiás e do Distrito Federal. Um dos passos idealizados pelo grupo
seria a transferência do senador para o PMDB. Em um telefonema, Cachoeira faz
essa recomendação e diz que seria bom para o grupo que Demóstenes se
aproximasse da presidenta Dilma Rousseff. Fora de Goiás, no entanto, os
negócios de Cachoeira caminhavam para Tocantins. Em conversa gravada em abril
de 2011, o bicheiro pede a Demóstenes que interceda junto ao ministro Luiz Fux,
do STF, para garantir a posse do ex-governador de Tocantins Marcelo Miranda no
Senado. Sua posse estava em julgamento, pois fora condenado por abuso de poder
político durante a campanha de 2006. “Ele é um cara nosso”, disse Cachoeira.
Demóstenes prometeu ajudar, mas Fux julgou contra Miranda e na semana passada
afirmou que nunca fora procurado por Demóstenes para tratar desse caso. A
decisão, no entanto, não atrapalhou completamente a ação do grupo em Tocantins.
Em uma conversa em maio de 2011 com o empresário Cláudio Abreu, na época
diretor da Delta Construções, o bicheiro diz que o secretário de Relações
Institucionais de Tocantins e filho do governador, Eduardo Siqueira Campos,
apesar de inimigo político de Miranda é amigo do grupo e afirma: “Foi ele quem
mandou dar o negócio lá para nós. A inspeção veicular em Tocantins.”
Segundo as investigações da PF,
ao lado de 38 pessoas não vinculadas diretamente ao poder público, foram
identificados 43 agentes públicos – sendo seis delegados da polícia civil, 30
PMs, dois policiais federais e um agente administrativo, além de um policial
rodoviário federal – que teriam participado do esquema comandado pelo
contraventor. Por motivos óbvios, a área de segurança pública era o foco de
Cachoeira. Vale lembrar que Demóstenes foi secretário de Segurança Pública do
primeiro governo de Perillo (1999-2002). No fim de 1999, ISTOÉ denunciou a
complacência do governo tucano com o jogo do bicho. Após a reportagem,
Demóstenes garantiu que faria uma operação limpeza no Estado. Hoje, sabe-se que
o então secretário limpou, sim, a área, mas para Carlinhos Cachoeira,
eliminando seus concorrentes.