Enquanto parte da magistratura
ainda resiste à transparência e ao controle externo, novos casos de fraudes e
injustificadas regalias vêm à tona, enredando o Judiciário brasileiro numa
crise sem prazo para acabar
Izabelle Torres e Alan
Rodrigues – da revista ISTOÉ – edição nº 2202
CAIXA-PRETA No Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior do País, 17 desembargadores receberam pagamentos individuais de quase R$ 1 milhão numa tacada só |
O Judiciário brasileiro vive
uma crise sem precedentes e sem previsão para terminar. Enquanto magistrados
não conseguem apresentar justificativas para o recebimento de benesses
milionárias, 205 pessoas que trabalham em tribunais estão incluídas numa lista
de suspeitos de movimentação financeira irregular. Nesse ambiente conturbado,
cresce o movimento de magistrados refratários à atuação do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), criado em 2004 exatamente para executar o controle externo do
Poder mais fechado e menos transparente da República. De outro lado da
trincheira encontra-se justamente a corregedora nacional de Justiça, ministra
Eliana Calmon. Atuando em defesa da transparência e da moralidade no
Judiciário, ela se mantém firme no propósito de investigar eventuais desvios e
excessos dos magistrados. A reação, por sua vez, parte de juízes e
desembargadores acusados pelo CNJ de terem desfrutado de vantagens financeiras
descabidas ou ilegais. O caso mais ostensivo é o do Tribunal de Justiça de São
Paulo, o maior do País. Ali, 29 dos 352 desembargadores receberam mais de R$ 400
milhões em benefícios como férias atrasadas e gratificações. Apesar das
pressões de colegas que não participaram do banquete, até agora não há
explicação convincente para a distribuição de tais regalias. “Este ‘segredo de
polichinelo’ prejudica a todos, colocando-nos sob suspeita, ao mesmo tempo em
que preserva os que se aproveitaram da amizade ou do conluio para atropelar
preceitos legais”, disse o desembargador Caetano Lagrasta.
LADOS OPOSTOS A corregedora de Justiça Eliana Calmon atua para acabar com benesses, como a que permitiu que o desembargador Roberto Vallim, do TJ-SP, recebesse da corte mais de R$ 500 mil |
Pesa contra o TJ-SP a acusação
de repassar quantias milionárias para alguns magistrados privilegiados. Entre
eles figuram nomes graúdos do Judiciário como o presidente do STF, ministro
Cezar Peluso, e o ministro Ricardo Lewandowski, também do STF e atual
presidente do TSE. Ambos participaram do fatiamento de R$ 17 milhões de uma
sobra de caixa do TJ-SP. Outros 17 desembargadores receberam pagamentos
individuais de quase R$ 1 milhão de uma só vez, passando na frente de colegas
que também tinham direito a diferenças salariais. Apenas o desembargador
Roberto Vallim Bellocchi, que presidiu o tribunal entre 2008 e 2009, recebeu da
corte mais de R$ 500 mil a título de verbas e créditos pagos com atraso. O
dinheiro, argumentou ele, serviu para quitar “parcialmente dívida de imóvel e
pendências bancárias”.
Com o orçamento de R$ 6, 8 bilhões,
equivalente ao do Estado de Sergipe, o tribunal paulista é o principal exemplo
da gastança desenfreada que se abateu sobre o Judiciário. Mas não é o único.
Dados do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) mostram que
houve movimentações milionárias “atipicas” também no Distrito Federal, Rio de
Janeiro, Minas Gerais e Bahia. O relatório do Coaf entregue à ministra Eliana
Calmon revela que as operações suspeitas de magistrados e servidores entre 2000
e 2010 alcançaram R$ 855 milhões. Da lista constam casos surpreendentes, como o
de um servidor do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, que
movimentou mais de R$ 200 milhões. Depois de divulgar a grave ocorrência, o
Coaf voltou atrás e explicou que as operações não foram realizadas no âmbito do
Judiciário. O funcionário do TRT-RJ era doleiro antes de assumir o cargo
público, e naquela condição teria fechado seus negócios milionários. Diante da
reação dos tribunais e das críticas feitas à lista de suspeitos, o Coaf fez um
novo filtro nos dados e identificou 205 casos que resultaram em Relatórios de
Inteligência Financeira. “O levantamento do Coaf não é um banco de dados de
bandidos”, justifica Antonio Gustavo Rodrigues, presidente do conselho.
As regalias são um problema
secular. Fechado para a sociedade, o STJ também é uma caixa-preta e não costuma
divulgar seus gastos. A falta de transparência bate de frente com a resolução
do CNJ que obriga os órgãos judiciais a divulgar detalhes do uso de dinheiro
público. Apesar da ofensiva contra o controle externo dos tribunais,
acredita-se que a chegada do ministro Ayres Britto à presidência do STF e do
CNJ pode evitar o esvaziamento do órgão. “Pessoalmente, vejo o CNJ como uma
bela novidade transformadora. O Conselho é como a Lei da Ficha Limpa: não pode
ser temido por quem prima pela Constituição e pelas leis”, disse à ISTOÉ o
futuro presidente do Supremo.