Mensalão será o julgamento do
século
Em entrevista exclusiva a VEJA,
o próximo presidente do STF diz que vai julgar o processo do mensalão neste ano
e rebate as críticas ao Judiciário
Rodrigo Rangel – de VEJA
O ministro Carlos Ayres Britto, futuro presidente do Supremo Tribunal Federal (foto: Gustavo Miranda/Agência O Globo ) |
O ministro Carlos Ayres Britto,
do Supremo Tribunal Federal, parece atrair causas de grande repercussão. Foi
dele o voto que abriu o debate sobre a necessidade de políticos terem ficha
limpa para se candidatar — um marco de progresso no processo político
brasileiro. Ele também relatou processos determinantes para a sociedade, que
resultaram na proibição do nepotismo no serviço público e na liberação da união
civil entre pessoas do mesmo sexo e de pesquisas com células-tronco. Sergipano
de Propriá, poeta, vegetariano e praticante de meditação, Ayres Britto assume
no próximo dia 19 a presidência do STF. Ficará no cargo até novembro, quando
completa 70 anos, e terá no julgamento do mensalão, o maior escândalo de
corrupção da história brasileira, a missão mais difícil e, certamente, a mais
marcante de sua carreira.
O senhor terá apenas sete meses
no comando do Supremo, mas deve presidir o julgamento mais complexo da corte, o
mensalão. Como está se preparando para isso?
Eu já venho estudando o
processo, como todos os demais ministros. Já tenho até uma minuta de voto.
Tenho aqui um quadro separando, como fez o Ministério Público, os denunciados e
os respectivos núcleos, o político, o financeiro e o publicitário. Todos os
réus estão nesse quadro. Os ministros já estão estudando o processo. Tenho
certeza de que cada um deles, sem exceção, está procurando cumprir seu dever
com isenção. O meu papel, nesse caso, é duplo. Serei julgador, mas também
presidente. Esse deverá mesmo ser o julgamento mais importante da história do
Supremo em termos de direito penal.
Alguns ministros defendem a
ideia de que o processo do mensalão comece a ser julgado já a partir do mês de
maio. Para quando o senhor, como novo presidente da corte, pretende marcar o
julgamento?
O que me cabe é marcar a data
tão logo o processo seja liberado para pauta. Quem libera é o ministro-revisor,
Ricardo Lewandowski. Estamos em ano eleitoral e, como a imprensa já anunciou
com base em uma declaração do próprio ministro Lewandowski, há o risco de
prescrição. Então, é evidente que eu, como presidente, vou agir com toda a
brevidade. Uma vez disponibilizado o processo para julgamento, providenciarei sua
inclusão na pauta em 48 horas.
Pela análise que o senhor já
fez, é concreta a possibilidade de prescrição dos crimes?
Em tese, se todos os réus forem
condenados, e o forem pela pena máxima, não há o menor risco de prescrição. A
possibilidade de prescrição existe, porém, para os réus que pegarem a pena
mínima. Estamos fazendo estudos detalhados sobre essa e outras questões.
Todavia, repito, estou falando em tese.
Que desafios especiais esse
julgamento impõe?
É um julgamento incomum pelas
circunstâncias em que o Ministério Público diz que os crimes ocorreram, pelo
número de protagonistas e pela quantidade de imputações. Tudo isso concorre
para tornar o processo incomum. Há uma pressão, compreensível, da imprensa e da
sociedade para que os fatos sejam postos em pratos limpos e com todo o rigor.
Está certa a sociedade. Mas cada um de nós tem de se afastar das pressões e
estudar o processo. A fase da denúncia foi ultrapassada, vencida. Havia
elementos para receber a denúncia porque a materialidade dos crimes de formação
de quadrilha, corrupção ativa e passiva e lavagem de dinheiro estava bem
documentada. Mas isso é página virada. De lá para cá, o que incumbia ao
Ministério Público era fornecer as provas daquilo que alegou, debaixo do
contraditório, da ampla defesa e com robustez. A nós, ministros, agora caberá
julgar.
O ministro Cezar Peluso, atual
presidente do STF, disse que as críticas recentes ao Judiciário tinham o
objetivo de atacar a credibilidade da instituição. O senhor concorda?
O diagnóstico que eu faço do
Judiciário no Brasil é favorável. Em um plano macro, não tenho dúvida de que,
do ponto de vista do preparo, nenhum outro poder ombreia com o Judiciário. É
também o mais devotado dos poderes, no sentido de vestir a camisa, não ter hora
para trabalhar. É o poder que mais resiste ao canto da sereia da prepotência,
da demagogia e do enriquecimento fácil. O quadro psicossocial não é dos
melhores por causa da dita crise em torno do Conselho Nacional de Justiça, o
CNJ, mas erram os que pensam que o Poder Judiciário pode passar muito bem sem o
CNJ, e erram os que pensam que o CNJ pode passar muito bem sem o Judiciário. O
Judiciário é um continente e o CNJ é um dos conteúdos desse continente.
Houve exagero da ministra
Eliana Calmon, corregedora do CNJ, quando ela disse que existem “bandidos de
toga” e “vagabundos” no Judiciário?
Em essência, a ministra quis
dizer que o Judiciário também incide em desonestidade. Ela não está errada. O
Judiciário, mesmo sendo aquele poder do qual mais se exige fidelidade à ética,
não é vacinado contra disfunções. Mas são fatos isolados. A ministra Eliana
quis fazer um alerta para apertar os cordéis do controle. Em essência ela está
certa. Eu só não usaria as palavras que ela usou para não facilitar o terrível
erro da generalização.
Quando era presidente, em 2003,
Lula afirmou que o Judiciário era uma caixa-preta. Ainda é?
O Judiciário nunca, jamais, em
tempo algum, pode se nivelar a poderes que têm caixa-preta. Não pode se nivelar
a quem age sob o signo da caixa-preta. Que outros setores do poder público
façam isso é uma coisa. O Judiciário jamais poderá permitir esse tipo de
arranjo. Hoje o foco está sobre o Judiciário, mas a maior de todas as
caixas-pretas, contra a qual o Judiciário tanto luta, é o caixa dois. E caixa
dois é caixa-preta. Uma terrível caixa-preta. O Judiciário nunca praticou caixa
dois.
Até 2001, para processar
deputados federais e senadores, o STF precisava ter autorização do Congresso.
Essa exigência caiu. Por que o Supremo demora tanto a julgá-los?
A demora existe, é verdade.
Primeiro, porque o processo penal é sempre delicado. Mesmo quando o inquérito
já começa no Supremo, são muitas as idas e vindas. Além disso, só há pouco
tempo o Supremo passou a recrutar juízes auxiliares para fazer interrogatórios,
acompanhar diligências e inquirição de testemunhas. O Supremo já está se aparelhando
para corrigir isso.
Quais são os desafios de ser
juiz no Brasil de hoje?
Ser juiz não tem sido fácil
porque, mesmo com a devoção dos magistrados à causa pública, o Judiciário não
anda satisfeito. A magistratura de base, sobretudo, se sente desprestigiada
pela sociedade e pelos outros poderes porque sua carreira está deixando de ser
remuneratoriamente atraente. Hoje, o Poder Executivo e o Poder Legislativo são
mais atraentes, oferecem melhores condições financeiras que o Judiciário. Mesmo
nos tribunais superiores tem sido assim. Veja quanto ganha um ministro do
Supremo e compare com o que ganha um senador, um deputado federal ou os
ministros da presidente Dilma, que fazem parte, e não são poucos, de conselhos
de estatais.
Quais serão suas prioridades
nos próximos sete meses?
É preciso fazer do breve o
intenso, na linha de Vinicius de Moraes naquele poema Soneto de Fidelidade:
“Que não seja imortal posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”.
O desafio é esse, mas com os pés no chão, porque eu tenho caneta, e não vara de
condão. Não sou milagreiro. As coisas não passarão por uma transformação
radical como em um passe de mágica. O que eu pretendo é praticar um modelo de
administração compartilhada, com participação não só dos meus pares no Supremo,
mas também de toda a magistratura. Nesses sete meses, quero estabelecer como
prioridade aquilo que é prioridade na Constituição. Pretendo fazer valer leis
vitais para a sociedade, como a Lei da Ficha Limpa, a Lei de Improbidade
Administrativa e a Lei Maria da Penha, tão essencial porque sai em defesa das
mulheres e no combate a esse mal terrível do patriarcalismo, do machismo e da
brutalidade doméstica.
Qual o papel do Judiciário no
processo de depuração da política nacional?
Minha prioridade das
prioridades será o combate à corrupção. Na Constituição está dito que os atos
de improbidade importarão em perda da função pública, indisponibilidade dos bens,
suspensão dos direitos políticos, ressarcimento ao Erário. É preciso fazer
valer a Constituição. Como dizia Ulysses Guimarães, o cupim da República é a
corrupção. É o principal ponto de fragilidade estrutural do país. É pela
corrupção que falta dinheiro para programas sociais de primeira grandeza como a
moradia, o transporte, a assistência à infância e à adolescência. Combater a
corrupção e o crime do colarinho-branco tem de ser a prioridade das
prioridades.
Como garantir que as
instituições do país funcionem em sua plenitude?
Eu não sou ingênuo, mas também
não sou um pessimista. Hoje, a transparência se tornou um pilar da democracia.
A cultura do biombo, da coxia e dos bastidores foi excomungada pela
Constituição. O Brasil atravessa um período excelente de santa curiosidade
social pelas coisas do poder. É por essa razão também que instituições como a
Polícia Federal, por exemplo, têm de agir de modo equânime, sem selecionar seus
alvos por conveniência. Da mesma forma, o Ministério Público, se começar a agir
voluntaristicamente, vai se ver obrigado a recuar diante da reação da imprensa
e da sociedade. A imprensa, a meu ver, é a grande novidade transformadora do
Brasil.
Certas práticas consideradas
normais em Brasília o assustam?
Eu gosto muito da cidade. Mas,
do ponto de vista político, eu já vim vacinado para entender que o núcleo do
poder é cheio de dificuldades de convivência. Há muito jogo de influência, e
nesse jogo ninguém pode desconhecer que circula muito dinheiro, correm muitos
interesses políticos e econômicos. Mas eu internalizei muito a postura das
garças, que vivem em ambientes enlameados, nos manguezais e brejos, mas quando
vão pousar executam uma coreografia tão cuidadosa que conseguem preservar a
alvura de suas penas. Observava isso em Sergipe, onde morava antes de vir para
cá. Não vejo Brasília só por esse prisma negativo, mas reconheço que há
práticas que põem em conluio o poder político e o poder econômico. Nessas
ocasiões, aqui e ali, em que sinto que a relação tende à promiscuidade, eu me
louvo no exemplo das garças de Aracaju.
Logo depois de ser escolhido
para o Supremo, o senhor se disse “convictamente petista” e que o PT era o
partido que mais admirava pelo “compromisso visceral” com a ética
administrativa. O senhor ainda partilha dessa opinião?
Essa resposta eu não posso lhe
dar porque eu tenho, para julgar, ações em que o PT é parte. Posso falar do meu
ponto de vista pessoal... Depois desses anos como ministro do Supremo, nada
como o livro da vida para ensinar a virar páginas. Minha militância hoje é
exclusivamente constitucional. Separei as coisas, e o fato de ser egresso do PT
não prejudica em nada a minha imparcialidade no julgamento dos processos. Não
permito que a antiga identidade ideológica se reflita nos meus votos.
Até que ponto a Justiça pode
ser suscetível às questões sociais?
O juiz tem de conhecer a
realidade das pessoas. Até para se perguntar se, no lugar das pessoas,
especialmente em matéria penal, ele se comportaria de outro modo. Isso não
significa que ele deva ser refém da sociedade, vassalo da opinião pública. Mas
deve, sim, auscultar os anseios populares, coletivos, para ver se é possível
formatá-los em decisões técnicas. Quando isso acontece, o juiz concilia a
Justiça com a vida. O Judiciário, por ser o mais formal dos poderes, o mais
ritualístico, tende a repetir mais do que inovar. E aí ele se desumaniza,
porque perde contato com a realidade palpitante da vida.
O senhor avalia bem o governo
da presidente Dilma?
Como cidadão, acho que ela tem
se saído bem no plano social.
O que muda com um poeta na
presidência do Supremo?
Algumas pessoas dizem que sou
romântico, quixotesco. Mas eu sou um otimista. Ser poeta não atrapalha. Só
ajuda. O poeta se aloja mais vezes no lado direito do cérebro, que é o da sentimentalidade,
o que abre os poros da inteligência racional, para humanizá-la.