A gula do cartel da merenda
Uma investigação mostra como empresas e políticos lucraram
com a corrupção no fornecimento de comida a escolas – e como as crianças
passaram a comer menos e pior
LEANDRO LOYOLA – da Revista ÉPOCA.
Um prato com arroz, feijão, pedaços de carne ou frango e um
legume, combinado com uma fruta e um suco. É a rotina de milhões de estudantes
de escolas públicas. Para as crianças, a merenda é uma refeição importante do
dia. Após quatro anos de investigação, o Ministério Público do Estado de São
Paulo afirma que esse pequeno prato tem um valor igualmente imenso – mas de outra
natureza – para uma organização criminosa que funcionou nos últimos dez anos em
57 cidades do Estado de São Paulo. Seis fornecedoras de merenda são acusadas de
superfaturar contratos – e políticos e funcionários públicos, de receber
propinas.
Essas empresas são acusadas de, para obter lucro, cobrar
caro e, em muitas ocasiões, servir aos alunos comida de pior qualidade. De
acordo com as acusações, ofereciam alimentos mais baratos, como cubos de carne
de frango, em vez de coxa e antecoxa. Os legumes, que deveriam ser cortados
frescos, já chegavam picados. Em São Paulo, o contrato com a prefeitura
especificava o fornecimento de maçã “tipo A”. Mas a maçã fornecida era do “tipo
C”, de pior qualidade. As merendeiras eram orientadas a servir porções menores.
Enquanto o contrato mandava servir uma maçã de sobremesa, as escolas
paulistanas serviam meia.
As empresas acusadas são: SP Alimentação, Nutriplus, Geraldo
J. Coan, De Nadai/Convida, Sistal e Terra Azul. Elas serão denunciadas pelo
Ministério Público do Estado de São Paulo por formação de cartel – prática em
que há um acerto para combinar preços e estratégias –, fraude a licitações,
formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. De acordo com a investigação dos
promotores Sílvio Antonio Marques e Arthur Pinto de Lemos Júnior, as empresas
renunciaram à concorrência, combinaram o jogo e passaram a ganhar contratos
superfaturados, pagando propina a prefeitos e a secretários municipais.
Segundo a ação, as empresas podem ter distribuído até R$ 400
milhões em propina. Isso equivale a 10% do que faturaram – o negócio de
merendas movimentou cerca de R$ 4 bilhões. “Trata-se de um cartel que ajudou
prefeitos e secretários no desvio de uma enorme quantidade de dinheiro
público”, afirma o promotor Marques. “Esse cartel não só provocou um enorme
prejuízo aos cofres públicos, como também prejudicou milhões de crianças, que
receberam durante vários anos refeições de péssima qualidade.” O promotor
Arthur Lemos preferiu não se manifestar.
A investigação ganhou corpo ao encontrar uma
testemunha-chave: Genivaldo dos Santos, ex-sócio da Verdurama, uma das empresas
do grupo SP Alimentação, um dos maiores no país no ramo de merenda. Entre 2002
e 2008, Genivaldo participou do esquema de fraude de concorrências e ajudou a
subornar políticos e funcionários públicos. Em 2010, ele assinou um acordo de
delação premiada com o Ministério Público (MP). Desde então, deu mais de 30
depoimentos, em que contou como eram feitos os acordos, revelou o nome dos
envolvidos e deu detalhes dos negócios ilícitos.
Com cerca de 2 milhões de refeições servidas por dia, a
prefeitura de São Paulo é o maior cliente do país de merenda escolar. Segundo
Genivaldo, as empresas do cartel, entre 2001 e 2011, pagaram sistematicamente
propinas a funcionários da prefeitura de São Paulo durante as administrações de
Marta Suplicy (2001-2005), José Serra (2005-2006) e Gilberto Kassab (a partir
de 2006). As empresas começaram a fornecer merenda à prefeitura durante a
gestão Marta. Até ali, era a prefeitura que comprava alimentos – e as
merendeiras preparavam a comida. A gestão Marta passou a comprar das empresas
30% da merenda servida nas escolas. Por economizar gastos, a terceirização é
considerada uma boa medida. O problema em São Paulo é que ela veio acompanhada
da corrupção.
Segundo a investigação do MP, o grupo formado pelas empresas
SP Alimentação, Geraldo J. Coan, De Nadai e Nutriplus pagava propina de 7% dos
valores dos contratos a integrantes da gestão Marta. Os promotores obtiveram
amostras disso a partir de uma operação de busca e apreensão realizada, em
julho de 2010, na casa de Sílvio Marques (homônimo de um dos promotores que
investigam o caso). Funcionário da SP Alimentação, Marques era encarregado da
parte financeira do esquema de corrupção. Para sorte da Justiça – e azar dos
envolvidos –, ele mantinha os registros dos negócios sujos em pen drives.
Confrontado com os testemunhos de Genivaldo, o acervo eletrônico de Marques deu
feições mais nítidas ao esquema. Entre os dados está uma planilha com a
contribuição de cada empresa do cartel para o pagamento de propina à Secretaria
Municipal de Abastecimento de São Paulo, entre agosto de 2003 e fevereiro de
2004 (leia a reprodução ao lado). Segundo o documento, a SP Alimentação pagou
R$ 321 mil; a Geraldo J. Coan, R$ 348 mil; a De Nadai, R$ 292 mil; e a
Nutriplus, R$ 241 mil.
De acordo com a investigação, um dos que recebiam os valores
era Valdemir Garreta, petista que atuou como secretário de Comunicação e de
Abastecimento da gestão Marta Suplicy. Garreta teve atuação de destaque nas
campanhas eleitorais de Marta. Consultor de comunicação, ele atuou na campanha
do presidente do Peru, Ollanta Humala, ao lado de Luis Favre, ex-marido de
Marta. Garreta é sócio de três empresas de comunicação e de uma de negócios
imobiliários. Num dos documentos, consta a propina que Genivaldo diz ter sido
paga a Garreta. Segundo a planilha, entre 1o e 15 de março de 2005, Garreta
recebeu R$ 61.700 da SP Alimentação, R$ 69.800 da Coan, R$ 56.200 da De
Nadai/Convida e R$ 54.400 da Nutriplus. Total: R$ 242 mil. Em outro documento,
consta que, entre fevereiro e junho de 2005, a SP Alimentação pagou R$ 524 mil
a Garreta. “As duas vezes em que meu nome foi citado foram pessoas que ‘ouviram
falar’”, diz Garreta. Em dezembro, o Tribunal de Justiça de São Paulo
determinou a quebra dos sigilos bancário e fiscal de Valdemir Garreta.
Segundo Genivaldo disse aos promotores, o responsável por
entregar a propina a Garreta era Eloizo Durães, o presidente da SP Alimentação.
Mas havia traições no grupo. Segundo a investigação, a propina que chegava às
mãos dos destinatários equivalia, na verdade, a 5% do valor do contrato – não a
7%. Eloizo é acusado de embolsar a diferença de 2 pontos percentuais. A investigação
sustenta que os companheiros de Durães descobriram o desvio, e, em 2005, o
dinheiro passou a ser entregue por um diretor da De Nadai/Convida. Não é a
primeira vez que Durães é acusado de pagar propina. Em 2010, ele foi preso sob
a acusação de subornar dois vereadores de Limeira. Eles receberam R$ 175 mil
para frear uma investigação sobre o contrato de R$ 56 milhões entre a SP
Alimentação e a prefeitura.
Em 2006, a prefeitura de São Paulo fez nova concorrência
para escolher os fornecedores de merenda escolar. A cidade foi dividida em seis
lotes. Cada lote foi vencido por uma das seis empresas acusadas de formar o
cartel. Em depoimento, a procuradora do município de São Paulo, Ana Lúcia
Marino Rosso, afirmou que a divisão da cidade em seis áreas foi feita sem
“nenhum fundamento técnico”. Segundo ela, o formato foi decidido pela
coordenadora de licitações da prefeitura, Erika Oliver. Meses após o leilão,
Erika e seu subordinado Sérgio Ramos foram contratados pela SP Alimentação, uma
das vencedoras da concorrência. Segundo Genivaldo, os preços, a divisão dos
lotes e a estratégia para os leilões foram acertados pelas empresas em hotéis.
Na gestão de José Serra, segundo disse Genivaldo, o sistema
de pagamento de propina mudou. Em vez de uma quantia proporcional aos valores
dos contratos, foi fixado um valor mensal de R$ 600 mil. Todos os meses, no dia
10, cada uma das seis empresas fornecia R$ 100 mil, entregues a um
representante da prefeitura no escritório da Nutriplus, em São Paulo. No dia 3
de abril de 2010, Genivaldo encontrou-se com Marques numa padaria na Zona Oeste
de São Paulo. A conversa foi gravada em áudio e vídeo. Nela, Marques diz a
Genivaldo que a propina era paga ao secretário municipal de Abastecimento,
Januário Montone. Segundo Genivaldo, Montone recebeu R$ 50 mil no dia 3 de
agosto de 2007 e outros R$ 50 mil 20 dias depois. Um dos pagamentos foi anotado
num papel timbrado da SP Alimentação (leia a reprodução abaixo). Em dezembro, o
Tribunal de Justiça de São Paulo decretou a quebra dos sigilos bancário e
fiscal de Montone. Ele nega ter recebido pagamentos. “Confio na decisão da
Justiça, não podendo, contudo, me manifestar sobre fatos que ainda estão sob
apreciação”, afirmou Montone, por meio de uma nota.
Genivaldo e o meticuloso Marques anotavam, em folhas de
“memorando interno”, com o timbre da SP Alimentação, a data, o destinatário e a
quantia a ser paga em propina. Em vários deles está escrito “Semab”,
abreviatura para Secretaria Municipal de Abastecimento de São Paulo. Os
promotores concluíram que todos os códigos “S” nas planilhas de caixa dois da
SP Alimentação se referem a propina. A sigla “S2” se refere à propina paga à
Semab. Há, ainda, tabelas de controle de propina a diversas prefeituras.
A primeira parte do esquema de corrupção do cartel consistia
em convencer prefeitos de outras cidades a adotar a terceirização. Isso era
feito mediante contribuições a campanhas eleitorais s ou com a ajuda de
lobistas. Em Jandira, cidade de cerca de 100 mil habitantes na Grande São
Paulo, o grupo SP Alimentação deu dinheiro à campanha a prefeito do candidato
Paulo Bururu (PT), em 2000. Quarenta e três dias depois de eleito, Bururu
contratou as empresas do cartel. Genivaldo contou que, em 2005, procurou Bururu
a pedido de Durães e ofereceu R$ 150 mil em dinheiro para que ele adotasse a
terceirização da merenda. Para justificar a medida, Bururu encomendou a um
prestador de serviços do grupo SP Alimentação – Olavo Ozzetti – uma avaliação
da merenda da prefeitura. Ozzetti concluiu que a comida era de má qualidade,
preparada sem higiene e cara. “É certo que as conclusões do indigitado
‘relatório’ refletiriam uma realidade distorcida, aquela pretendida pela empresa”,
afirmam os promotores.
O acerto no cartel era que a empresa que convencesse o
prefeito venceria a licitação – as outras só fingiriam concorrer, para dar a
impressão de que o processo fora legal. A prefeitura de Jandira adotou a
terceirização e fez uma concorrência. A SP Alimentação ficou em 5o lugar. Foi
escolhida porque as quatro primeiras classificadas desistiram. De acordo com
Genivaldo, Bururu recebeu da SP Alimentação três parcelas de R$ 50 mil por
isso, entregues em seu carro, num posto de gasolina. O MP apreendeu na casa de
Marques um memorando de 2007 que detalha esses pagamentos a Bururu. Bururu nega
as acusações. Numa ação por improbidade administrativa, o MP afirma que Bururu
“adquiriu ou manteve bens incompatíveis com seus rendimentos”. O MP localizou
17 imóveis dele. Em dezembro de 2011, a Justiça decretou o bloqueio de seus
bens.
(Foto: Clayton de Souza/AE e Jefferson Coppola/Folhapress) |
O deputado federal Abelardo Camarinha (PSB-SP) foi três
vezes prefeito de Marília, cidade de 200 mil habitantes do interior de São
Paulo. Na investigação, ele é citado como beneficiário de metade da propina de
10% paga pela SP Alimentação. O valor era dividido entre Camarinha e o prefeito
Mário Bulgareli (PDT), segundo Genivaldo. A propina atribuída a Camarinha era
de R$ 50 mil mensais. O promotor Isauro Pigozzi Filho cruzou os dados das
planilhas de Marques com os pagamentos feitos pela prefeitura. “Os dados
bateram”, diz. “O rapaz que fez a delação premiada falou de 2005, quando eu não
era mais prefeito”, afirma Camarinha. Ele responde a quatro processos e oito
inquéritos no Supremo Tribunal Federal. No fim do ano passado, a Justiça
bloqueou os bens de Camarinha e Bulgareli.
Os promotores também encontraram rastros de corrupção no
Paraná, no Rio Grande do Sul, no Maranhão e em Minas Gerais. Na casa do diretor
financeiro da SP Alimentação, Antônio Marques Franco, os promotores apreenderam
comprovantes de depósitos bancários. Entre os papéis estava um depósito de R$
15 mil na conta de Adalberto Baka e outro, de R$ 30 mil, na conta de Alda Baka.
São dois irmãos de José Baka Filho, prefeito de Paranaguá, no Paraná. Alda
trabalhou na prefeitura de Jaguariúna, em São Paulo. As duas cidades mantinham
contratos com a SP Alimentação. Alda e Adalberto disseram ao MP que o dinheiro
veio de uma herança. Mas não souberam explicar o que a SP Alimentação tinha a
ver com isso.
NA PLANILHA O empresário Eloizo Durães, ao ser preso em 2010. Acima, a tabela de pagamentos que ele é acusado de ter feito à prefeitura de São Paulo em 2003 e 2004 (Foto: André Lessa/AE) |
A SP Alimentação e Eloizo Durães não quiseram falar sobre a
investigação. A SP Alimentação disse que “não participou de qualquer processo
fraudulento para licitação ou manutenção de contratos”. A Nutriplus afirmou que
“qualquer um de seus representantes jamais esteve em reuniões com as demais
empresas do setor com a finalidade de fraudar qualquer licitação”. O advogado Antonio
Carlos Dueñas disse que a Terra Azul “não participou de reuniões para combinar
nada”. Representantes da Geraldo J. Coan e da Sistal não foram localizados para
comentar o assunto. A De Nadai não respondeu ao pedido de entrevista. No ano
passado, numa festa, Sérgio De Nadai, sócio da De Nadai/Convida, deu entrevista
a um programa de celebridades. Disse que desistira de negócios com governos,
por ter levado calotes.
Na década de 1970, na persona de seu eterno personagem Didi
Mocó, o humorista Renato Aragão gostava, nos episódios de Os trapalhões, de
fazer pilhéria com o colega Mussum. “Mussum só ia à escola para comer merenda”,
dizia Didi. Há mais de 40 anos, milhões de crianças brasileiras são alimentadas
pela merenda escolar. A corrupção é inaceitável em qualquer lugar. Mas ganha
contornos mais cruéis quando, além de roubar dinheiro público, empresas e
políticos proporcionam comida ruim ou em quantidade insuficiente para crianças.