Grupo de 23 pessoas com a mesma
doença genética rara é o maior do mundo
Fernanda Bassette, de O Estado
de S. Paulo
Xeroderma: mil vezes mais possibilidades de desenvolver Câncer |
Sob um calor que chega a beirar
os 35°C, na zona rural de um povoado no interior de Goiás, vivem pelo menos 23
pessoas que têm uma doença raríssima que as impede de se expor à luz do Sol. Juntas,
elas formam a maior comunidade do mundo de que se tem conhecimento que convive
com a doença. Filhos de casamentos consanguíneos (entre primos ou outros
parentes próximos), eles têm xeroderma pigmentoso - uma doença genética que
provoca extrema sensibilidade à luz ultravioleta e aumenta em mil vezes o risco
de câncer de pele. O pequeno povoado de Araras pertence à cidadezinha de Faina,
tem cerca de mil habitantes e três troncos familiares principais. A maioria dos
moradores é de lavradores que sobrevivem trabalhando na roça, em plantações ou
na pecuária - sempre embaixo de um sol escaldante. O hábito de usar chapéu e
protetor solar diariamente só chegou ao povoado há cerca de dois anos, depois
que o xeroderma foi clinicamente diagnosticado pela dermatologista Sulamita
Chaibub, do Hospital Geral de Goiás. Antes disso, a população sequer tinha
noção do risco que corria por trabalhar exposta ao Sol.
Dijalma, de chapéu, perdeu olho, nariz e lábio (Wilson Pedrosa A/E) |
Quatro irmãos. Dijalma Antônio
Jardim, de 36 anos, é um exemplo típico da falta de informação que o povoado de
Araras sofreu durante pelo menos 150 anos. Por meio das árvores genealógicas,
pesquisadores acreditam que ao menos cinco gerações de familiares desenvolveram
o xeroderma e morreram sem ter ideia da doença que tinham. Filho de um casal
sem a doença, mas em que o pai e a mãe carregavam o gene defeituoso, Dijalma e
mais três irmãos - de um total de sete filhos - desenvolveram o xeroderma. Um
irmão morreu com 18 anos, as duas irmãs têm a doença controlada e Dijalma manifestou
uma forma mais avançada do xeroderma. Ele já fez mais de 50 cirurgias para
retirar tumores de pele e, como consequência, já perdeu o nariz, um dos olhos e
a parte superior do lábio - no dia a dia, ele usa uma prótese feita com um tipo
de silicone no rosto. O outro olho está sendo afetado e Dijalma já teve de fazer
um transplante de córnea. "Desde criança e durante toda a minha vida
trabalhei na roça, embaixo do sol forte, batendo arroz, levando o gado para
pastar, tirando leite de vaca. Nunca usei chapéu nem protetor solar", diz.
Dijalma conta que seus sintomas se tornaram mais evidentes quando ele tinha 9
anos - além das sardas e pintas na pele, surgiram pequenos caroços que tiveram
de ser retirados cirurgicamente. Eram seus primeiros tumores na pele. Mas,
apesar de serem quatro irmãos com o mesmo tipo de problema na pele, Dijalma diz
que nenhum médico fez uma associação ou desconfiou que o problema poderia ser
genético. "Uns diziam que era problema no sangue, outros diziam que era
problema de pele. Diagnóstico mesmo a gente só teve há menos de dois
anos." Hoje Dijalma recebe auxílio-doença no valor de R$ 545, mas ainda
não conseguiu se aposentar oficialmente. Toma um remédio para o rosto que
compra com o próprio dinheiro - a última caixa custou R$ 215. O protetor solar
que ele passa quatro vezes por dia é doado mensalmente por uma farmácia de
manipulação. "Luto contra esse problema diariamente. Só não posso me
desesperar porque o que eu quero é viver", diz o lavrador.
Suspeita. O caso do povoado só
foi descoberto em 2009, depois que a educadora Gleice Machado, de 34 anos,
estranhou o aparecimento de sardas e bolhas no corpo do filho Alison, de 3. Ela
o levou à médica, que não suspeitou de nada e disse que as bolhas eram normais
para uma criança ruiva e de pele clara. Um ano depois, como as sardas haviam
aumentado e as bolhas estavam piores, Gleice voltou à médica com o menino e
disse que tinha parentes e amigos com o mesmo tipo de problema na pele.
"Com a descrição dos casos, descobrimos que era xeroderma. Temos o
diagnóstico clínico, mas ainda esperamos um diagnóstico genético e
definitivo", conta. A partir de então, Gleice não se conformou em ficar
parada esperando a doença avançar e decidiu estudar e pesquisar mais sobre
xeroderma. Ela e o marido são primos de quarta geração. Os pais dela são primos
de primeiro grau e os sogros também. "Meu marido e eu entramos em
depressão, mas eu tinha de me reerguer para ajudar meu filho. Ele é uma criança
privada de tudo, não pode andar de bicicleta durante o dia, não pode brincar na
rua. Não sei o que ele pensa quando vê os tios mutilados por causa da
doença", diz.
Gleice fez um levantamento
informal de todas as pessoas que tinham as características da doença para
entregar aos médicos. "Comecei a conversar com os mais velhos e a
pesquisar mais para entender melhor. Considerando os que já morreram, são mais
de 50 pessoas da comunidade com o mesmo problema", diz. Associação. Gleice
fundou, então, a Associação Brasileira de Xeroderma Pigmentoso (Abraxp), que
hoje tem pelo menos cem pessoas de todo o Brasil cadastradas. É por meio dessa
associação que os portadores de xeroderma trocam experiências. A educadora
passou a realizar um trabalho de conscientização dos moradores para que eles
entendam a importância de usar diariamente o protetor solar, para que usem
chapéu ou boné e evitem se expor ao Sol. Ela diz, porém, que essa é uma tarefa
difícil, especialmente entre os mais velhos. "As pessoas da vila achavam
que era um castigo de Deus, outros falavam que era doença sexualmente
transmissível. A falta de informação prejudicou demais e é difícil lidar com
essa barreira cultural", diz. Segundo Gleice, a comunidade ainda está
longe de ter os cuidados necessários para viver com menos riscos. "Muitos
ainda trabalham expostos ao Sol porque não conseguem se aposentar. A escola não
está preparada com vidros escuros, as casas não são adaptadas, não conseguimos
roupas especiais e a prefeitura fornece transporte apenas uma vez por semana. É
uma luta diária."