Cidade do interior pernambucano
promove o maior evento de diversidade cultural da América Latina
Catedral de Santo Antônio lotada para ver Carmem Monarcha e maestro José Renato Accioly (foto: Landisvalth Lima) |
Um município, estado ou país se
desenvolve bem ou mal a partir de suas origens. É comum conhecermos cidades
localizadas em regiões ricas e que não têm resultados satisfatórios. Outras,
mesmo em regiões limitadas, conseguem marcas desenvolvimentistas que ultrapassam
fronteiras, inclusive internacionais. O município de Garanhuns, no Estado de
Pernambuco, pode servir de exemplo de como é possível, apesar das diversidades,
ter uma logomarca original, criativa e atraente, que incorpore sua identidade e
eleve seu nome e seu povo para além dos seus limites. Garanhuns tem mais de uma
logomarca, mas, nesta reportagem, falaremos sobre o Festival de Inverno de Garanhuns
– FIG.
Antes, vamos nos situar geográfica
e historicamente. Garanhuns era antes Tapera do Garcia. Suas terras eram habitadas
por índios cariris até a chegada de brancos e negros fugidos do domínio holandês,
no século XVI. Em 29 de setembro de 1658, o português Nicolau Aranha Pacheco, Cosmo
de Brito Cação, Antônio Fernandes Aranha e Ambrósio Aranha de Farias receberam,
do governador André Vidal de Negreiros, 20 léguas de extensão. Surge então os campos
de Garanhuns e Panema. No mesmo ano nasce o Sítio Garcia, exatamente onde hoje
está a cidade de Garanhuns. Em 1670, com a Guerra dos Cariris, o Sítio Garcia foi
totalmente destruído, passando a ser conhecido como Tapera do Garcia. No meu
romance Cariri Sangrento (Kindle/Amazon) o local serve de ponto de apoio para a
invasão do Quilombo dos Palmares.
Elba Ramalho é nome carimbado do FIG (foto: Landisvalth Lima) |
Além da guerra com os índios, o
quilombo de Zumbi prejudicava o dito progresso da região. Por muito tempo o
local não passou mesmo de uma tapera. Nenhum fazendeiro queria ser alvo de ameaças
constantes de depredações, saques e morticínios. Com a morte de Zumbi, em 1696,
o desenvolvimento estilo europeu tomou conta da região. Em 1699 foram expedidas
cartas régias criando comarcas de juizado. Entre elas estava a de Garanhuns,
sede da capitania do Sertão do Ararobá. O coronel Manuel Pereira de Azevedo
comprou a Tapera do Garcia por volta de 1704. Logo em seguida morreu. A viúva, Simoa
Gomes de Azevedo, passou a administrar o local e, em 1756, fez doação de meia
légua à Confraria das Almas da matriz de Garanhuns, local onde hoje está erguida
a cidade. Curiosamente, foi o período de decadência de Garanhuns. Com a criação
da Vila de Cimbres, hoje município de Pesqueira, em 1762, Garanhuns ficou
apenas como sede da freguesia de Santo Antônio de Garanhuns, perdendo a
condição de sede da capitania do Sertão do Ararobá. Quatro anos depois, a
capela local deixou de ser curato e passou à condição de sede do vicariato. Em
15 de agosto de 1800, foi criada a paróquia de Santo Antônio da povoação de
Garanhuns. Foram anos de ostracismo. Somente nos fins do século XIX, com a
construção da estrada de ferro para o Recife, Garanhuns volta a ser
protagonista e vê sua população crescer. Em 1990, com a criação do Festival de
Inverno, o turismo passou a ser a ser moeda forte e principal gerador de renda
da região.
Ainda falando da formação do
município, Garanhuns está situado entre sete colinas, no planalto da Borborema,
a 842 metros acima do nível do mar. No ponto mais elevado, a altitude chega a
1.030 metros. É o principal município do Agreste Meridional, distante 230 quilômetros
da capital Recife. Sua população supera os 130 mil habitantes, mas é uma
espécie de capital de uma região que supera 1 milhão de habitantes, fazendo
fronteira com Caetés, que já pertenceu a Garanhuns e onde lá nasceu o
ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, além de Capoeiras, Jucati, São João,
Palmerina, Correntes, Lagoa do Ouro, Brejão, Terezinha, Saloá e Paranatama. As sete colinas, que lhe proporciona um clima em
torno dos 21 graus e temperatura no verão de 30, são Monte Sinai, Triunfo, Columbino,
Ipiranga, Antas, Magano e Quilombo. É clima de montanha e pode chegar a 9 graus
durante o Festival de Inverno. Não é por acaso que a chamam de Suíça Pernambucana
ou Cidade das Flores.
Siba participou da homenagem a Biu Roque no 29º FIG (foto: Landisvalth Lima) |
Até mesmo na bandeira e no
brasão do município há marcas da sua vocação para o progresso. Longe de ser
apenas símbolo de identidade e pertença, a bandeira de Garanhuns, idealizada
pelo monge beneditino Dom Paulo, e oficializada pela Lei 457, de 05 de março de
1958, revela a vocação da cidade para o protagonismo. Claro que o branco simboliza a paz, o
vermelho simboliza a autenticidade e fortaleza dos filhos da terra, mas são os anuns
voando para o alto que indicam a busca de ideias elevadas. O FIG pode ser muito
bem visto como uma das ideias mais elevadas do município. Para completar, as
esferas de cores azuis e branco simbolizam as fontes de águas minerais: Vila
Maria, Pau Amarelo e Serra Branca, que, infelizmente, ainda não tive a chance
de conhecer. Talvez por isso seja a cidade mais diversificada do agreste
meridional de Pernambuco, centro regional de saúde e educação com diversos
hospitais, empresas de saúde e assistência médica. Presença da Universidade de
Pernambuco – UPE; a Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE; a AESGA –
Autarquia de Ensino Superior de Garanhuns, todas com cursos de graduação e
pós-graduação.
Sempre que faço uma reportagem não
gosto de deixar dúvidas. Mas, afinal, o que significa Garanhuns? Fiquei pasmo
com a quantidade de significados e teorias sobre a palavra. Mas me convenceu a
teoria do lexicógrafo José de Almeida Maciel. Para ele, Garanhuns vem de guirá-nhum,
os pássaros pretos, nome de uma tribo existente no local. Como os pássaros
estão presentes na bandeira e no brasão, ficamos por aqui. A possibilidade nos
parece a mais completa, comprovável. Também cabe uma explicação: até o início
de 2014, o município comemorava o dia da sua emancipação em 4 de fevereiro.
Esta não ficou sozinha após uma pesquisa realizada pelo presidente do Instituto
Histórico e Geográfico de Garanhuns no Museu do Tombo, em Portugal. Ele
encontrou a Carta Régia do município, assinada por Dom João IV, que elevava
Garanhuns à categoria de vila, datada de 10 de março de 1811. Portanto, Garanhuns
é mais velha que o Brasil como nação independente. Mas a data é da criação do
município. Sua emancipação é de 4 de fevereiro de 1879, e isso não mudou.
Festival de Inverno de Garanhuns
Mestre Anderson Miguel participou do projeto Som na Rural, do 29º FIG (foto: Landisvalth Lima) |
O Festival de Inverno de
Garanhuns é o principal evento realizado no município e o maior evento multicultural
da América Latina. São mais de 500 mil visitantes por ano e só perde para o
Forró de Caruaru, distante 94 quilômetros. Foram as meninas da banda Samba de
Moça Só que idealizaram a viagem. Eu e Ana Dalva saímos no dia 18 de julho e só
percorremos três rodovias: Ba-393, BR-110 e BR 423. Basta seguir para Paulo
Afonso, dobrar à direita e pegar a 423. São 370 quilômetros, saindo de Heliópolis,
6 horas de viagem, com direito a parada para o almoço. Para quem não sabe, lá
também tem um bairro chamado de Heliópolis. Quem quiser ir para lá, o melhor é
alugar uma casa com antecedência. Sai bem mais barato que qualquer pensão e pode
passar os dez dias com tranquilidade.
No primeiro dia, tentamos participar
da abertura. Alta concorrência. A fila era enorme. O Teatro Luiz Souto Dourado,
no Centro Cultural Alfredo Leite Cavalcanti, só tem lugar para 500
sobreviventes e foi o palco da abertura do evento e da primeira atração do 29°
Festival de Inverno de Garanhuns. O espetáculo “O Som e a Sílaba”, dirigido
pelo ator e roteirista Miguel Falabella, reuniu centenas de pessoas na noite de
quinta-feira (18), após a abertura oficial do evento. Não assistimos à abertura
oficial nem a “O Som a Sílaba”. Minha
esperança era que a fila estava enorme e resolveram abrir uma sessão extra. Mesmo
assim ainda não deu para quem queria. Teve gente que chegou para ficar na fila
6 horas da manhã. Não conseguimos novamente. No outro dia foi a vez de outra
peça teatral: O alienista, baseado em obra de Machado de Assis. Também não foi
possível. O FIG de 2019 não reservou cadeira para mim no teatro. Paciência.
Banda de Pau e Corda fez show marcante no Palco Dominguinhos (foto: Landisvalth Lima) |
Mas longe de mim dizer que não
prestou. Havia inúmeras outras atrações. No festival, a música, o cinema, as
artes cênicas, a cultura popular e todas outras formas de expressão se encontraram
entre os dias 18 e 27 de julho, na 29ª edição do FIG. O festival oferece aos
turistas desde os grandes shows aos cortejos da cultural popular pernambucana e
brasileira, do espetáculo teatral ao recital de poesias nas feiras livres,
tendo toda riqueza e diversidade cultural abrangida. Não se trata de uma coisa
centrada em algo que faz sucesso. A palavra do FIG é diversidade cultural e
isto acaba nos proporcionando o conhecimento de novas manifestações culturais,
virando uma espécie de porta para divulgação das culturas erudita e popular.
Foram dezessete polos de folia
espalhados pela cidade, diversos grupos e artistas de renome, assim como
estreantes patrimônios vivos e destaques da atualidade. Uma das principais
praças da cidade, a Praça Mestre Dominguinhos, o sanfoneiro é filho de Garanhuns,
segue servindo de palco para artistas bastante admirados pelo país. Foi lá que
assistimos mais uma vez Elba Ramalho, que continua a Diva da nossa MPB. Antes,
tivemos Golden Hits Orquestra e um tributo ao cirandeiro Biu Roque, com
Alessandra Leão, Siba, Caçapa, A Fuloresta e Renata Rosa. Depois de Elba
tivemos a homenagem a Jackson do Pandeiro, o nome homenageado da 29ª edição do
FIG. Passaram pelo palco Silvério Pessoa, Geraldo Maia, Lucinha Guerra, Lady Laay,
Mari Periférica, a própria Elba Ramalho e ainda Zélia Duncan, Maciel Salu e
Luiza Fittipaldi. No dia seguinte, no mesmo palco, Amanda Back, Banda de Pau e
Corda, Mariana Aydar, Zélia Duncan e Barão Vermelho.
Antônio Nóbrega também fez show na Catedral de Santo Antônio (foto: Landisvalth Lima) |
Não conseguimos ver nem dez por
cento do que estava na programação, da literatura ao cinema, mas participei de
uma experiência extraordinária: O “Som na Rural”. A ideia é exibir artista e
espetáculos alternativos. A rural fica no Parque Euclides Dourado, próximo de
diversas outras atrações e onde está boa parte da gastronomia do evento. Grandes
nomes da música pernambucana e nacional passam no polo do ‘Som na Rural’, projeto
idealizado por Roger de Renor e Nilton Pereira, há mais de 10 anos. São diversos
os tipos de manifestações culturais que o “Som na Rural” leva pelo estado de
Pernambuco. Antes de chegar ao 29º FIG, “Som na Rural” fez uma viagem pelo
interior, desde a Zona da Mata, Agreste até o sertão. Na sexta-feira (19), vimos e ouvimos o show da
cantora Cibele do Cavaco e, na sequência, foi a vez da ciranda e do maracatu com
o Mestre Anderson Miguel, de Nazaré da Mata, em Pernambuco. O cantor trouxe
para Garanhuns canções do seu álbum “Sonorosa”, que foi lançado em 2018. No
show, Anderson teve a participação do cantor e compositor Siba, nas guitarras,
e do Mestre Nico, nos trombones. A noite ficou completa com as intervenções do
Dj Evandro Q?. Além destes, o Som na Rural teve o forró de Edmilson do Pífano, o
pop recifense do cantor e instrumentista Samico, o Coco de Tebei, a banda Saga
HC, a mineira Brisa Flow e a banda de punk rock recifense, Devotos, dentre
tantos outros nomes.
Agora, é preciso viver algo para
dar uma dimensão exata daquilo que se vê. E, confesso, as apresentações feitas
na Catedral de Santo Antônio foram para lá de extraordinárias. Pena que o
espaço ficou pequeno. Logo na sexta-feira (19) apresentou-se a Orquestra
Sinfônica de Câmara de Pernambuco com a solista Carmem Monarcha. A regência foi
do maestro José Renato Accioly. Para completar o dia, a apresentação de Ayrton
Montarroyos e o seu “Mergulho no Nada”. No dia seguinte, o impagável Antônio
Nóbrega apresentou o seu SaGRAMA. Pela noite foi a vez de “Buarqueanas”, com
Alexandre Caldi e Quarteto Encore. Mas faço aqui destaque a duas apresentações.
Na sexta-feira (18) aconteceu na Catedral uma homenagem ao pernambucano Luiz
Vieira, com Altermar Dutra Jr., Claudete Soares, Eliana Pittman e Márcio Gomes.
Espetacular. Também merece destaque o show de Leila Pinheiro, ocorrido no domingo
pela noite. Depois disso, qualquer ser humano vai para casa dormir o sono dos
justos.
Grupos de Afoxés também têm espaços garantido no FIG (foto: Landisvalth Lima) |
Para preencher os horários entre um espetáculo e
outro, corríamos para o Parque Euclides Dourado, um pouco distante do centro,
ou para o Palco de Cultura Popular Ariano Suassuna, onde vários grupos de afoxés,
maracatus, cocos, cirandas se apresentam, bem próximo à Catedral Santo Antônio.
Como dissemos antes, não deu para ver tudo que queríamos. Até porque é
humanamente impossível estar em vários lugares ao mesmo tempo. Também,
precisávamos voltar para Heliópolis. O trabalho nos esperava na segunda-feira. Não
precisa dizer que estou me programando para a 30ª edição do Festival de Inverno
de Garanhuns em 2020. Desta vez farei o possível para ficar os dez dias. Isso me
fará menos frustrado por não ter ido a nenhum lançamento de livro, de não ter assistido
a nenhuma peça teatral, não ter visto shows de Sheyla Costa, Leonardo Neiva,
Leo Mancini, Duo Siqueira Lima, Boca Livre, João Bosco, Anastácia, Maciel Melo,
Otto, Lenine, Alcione e tantos outros artista lá do “Som na Rural”, além dos
não conhecidos do público baiano e que Pernambuco tem de sobra, para si e para
o mundo.