Para alguns seringueiros, manejo
da floresta para a exploração de madeira é uma maneira de legalizar o
desmatamento; outros afirmam que proposta é uma forma de evitar o predomínio da
atividade pecuária
Leonêncio Nossa, Enviado especial
de O Estado de São Paulo a Xapuri
Chico Mendes ao lado de Mary Alegretti (foto: G1) |
Madeira e carne de boi são os
produtos que animam negociantes e aventureiros a percorrer a estrada de terra
da Sibéria, região inóspita de floresta em Xapuri, no Acre. As famílias desse
lugar isolado da Amazônia têm dificuldades para escoar até o centro do
município, a 40 quilômetros, a borracha e a castanha, marcas do modelo de
desenvolvimento sustentável defendido pelo líder seringueiro Chico Mendes,
morto há exatos 25 anos.
Um jovem casal de seringueiros
que era criança quando o ambientalista sofreu emboscada tem perdido o sono com
a proposta de manejo florestal. Francisco Diogo da Silva, 39 anos, a mulher
Elizângela, 33, e cinco filhos vivem numa "colocação", um pedaço de
terra numa área extrativista. Ele é favorável à proposta recebida de uma
associação certificada para explorar a madeira. A mulher rejeita a ideia.
"O manejo é uma tiração geral de árvores. Nunca achei que seria legal. Se
é reserva, tem de proteger", afirma Elizângela. O marido diz acreditar que
a retirada de cedros pode ser uma ajuda a mais. "A seringa e a castanha
não têm preço bom. Vou participar no primeiro ano. Se não tiver fundamento, não
trabalho mais."
O legado de Chico Mendes rende
discussões diárias nas terras transformadas em reservas extrativistas ou
desapropriadas pelo governo logo após o assassinato. Para uns, o manejo é a
legalização do desmatamento. Para outros, uma forma de evitar o predomínio da
pecuária. A exploração comercial de madeira divide até aliados do ambientalista
que hoje controlam a política do Acre.
Francisco vive na
"colocação" desde a adolescência, quando o pai participava dos
"empates" - movimentos de resistência organizados por Chico Mendes à
entrada de pecuaristas que compravam a preços baixos seringais, expulsando
famílias de trabalhadores. Nesses últimos 25 anos, a Sibéria perdeu parte de
sua floresta. A caça desapareceu da mata. Quando o Estado chegou à
"colocação", o casal estava fora, numa caça. Sani, o filho mais
velho, de 13 anos, diz que nos dias anteriores os pais voltaram sem
"bicho" nas costas.
Desmate. Desde a noite de 22 de
dezembro de 1988, quando caiu na porta dos fundos de sua casa, atingido pelo
tiro de escopeta disparado pelo filho de um fazendeiro, Chico Mendes, amigo do
pai de Francisco, transformou-se num ícone internacional e expandiu o movimento
em defesa do meio ambiente no País. O mito, porém, não evitou que a área
desmatada do Acre passasse de 6 mil para 19 mil km². O Estado perdeu um trecho
de cobertura vegetal que corresponde a nove vezes a área do município de São
Paulo - ainda assim, a floresta cobre mais de 85% do território acriano. Em
Xapuri, onde se concentra a agricultura de subsistência e as atividades de
extrativismo, o desmatamento atinge 22% das terras.
Francisco e Elizângela afirmam
que a vida melhorou "bastante" desde o tempo em que ouviam as conversas
dos pais com Chico Mendes. Uma pequena motocicleta no quintal de casa é um bem
que orgulha a família. Eles observam, no entanto, que o dia a dia continua
duro. Elizângela reclama da dificuldade em garantir os estudos dos filhos.
O motorista contratado pela
prefeitura para fazer o transporte escolar na região deixou de aparecer. O
filho Sani costuma ir sozinho na motocicleta da família para a escola,
localizada a seis quilômetros. "Quando Francisco não está em casa, a gente
é obrigada a colocar o Sani em cima da moto. É um crime, mas não tem outro
jeito", diz a mãe.
Renda. Em outro ponto da floresta
de Xapuri, o seringueiro Silvano Moreira Gomes, 59 anos, da
"colocação" Equador, diz que já "manejou" madeira três
vezes. "Não arranjei renda. Madeira não dá futuro." Ele ocupa há 27
anos uma área de 300 hectares, com três estradas de seringa, 150 a 180 árvores
em cada uma. Ganha R$ 220 por quinzena com a seringa. Ele mostra uma pequena
montanha de 20 toras de angelins, árvore de madeira nobre, num descampado perto
de sua propriedade. As madeiras foram arrancadas em agosto pela empresa que faz
o manejo. Avalia que receberá R$ 8 mil pelos troncos. "Pagam R$ 60 por um
metro de madeira, mas demoram para pagar", diz. "No clandestino, vale
R$ 800."
Silvano conta que a retirada no
manejo não impede que árvores "avós", grandes espécies que servem
para garantir sementes, caiam depois com ventos, e estradas de seringas sejam
destruídas. "Se eu tivesse outra renda, não deixaria tirarem as
árvores", diz. "Se ele (Chico Mendes) estivesse vivo, o manejo não
sairia. Está explorando a floresta do mesmo jeito e deixando o seringueiro sem
árvore alta dentro."
Ele mora com a família de três
filhos numa casa de cinco cômodos. Silvano observa que o pai, Jasson Moreira
Gomes, que chegou ao Acre no tempo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), morreu
sem ter uma terra própria. "Agora, moro no que é meu. Com todas as
dificuldades que a gente vive, acho que o Chico foi um vencedor. Se não fosse
ele, quem estaria aqui agora falando com vocês era fazendeiro."
Quem percorre a região da Equador
e da Sibéria percebe que os planos de manejo garantidos por normas criadas pelo
governo federal enfrentam problemas. Na semana passada, o Imaflora, uma
entidade que dá certificação ambiental, cancelou o selo de 14 madeireiras do
Estado, alegando que foram usadas árvores de reservas ambientais e constatadas
fraudes em documentos de cortes. No papel, o manejo corta apenas árvores de
mais de 20 anos em áreas delimitadas, garantindo a recuperação da floresta. A
fiscalização, porém, é ineficiente.