Juiz Federal Odilon de Oliveira sob proteção da Polícia Federal 24 horas! |
Com o desafio de julgar os
acusados de roubar o dinheiro público, o juiz federal Odilon de Oliveira faz
duras críticas à legislação brasileira. Para ele, a lei é feita para
privilegiar as classes econômicas mais altas e proteger os corruptos. Como
magistrado, sente a dificuldade de mandar para cadeia os envolvidos na
roubalheira do dinheiro do contribuinte. Hoje, é mais fácil colocar um ladrão
de bicicleta na cadeia a condenar um corrupto. “Você sabe que o sujeito é
corrupto, mas você vota nele no ano que vem. Ficha suja que não tem trânsito em
julgado (condenação) se elege com facilidade. Não poder votar nele de maneira
alguma”, afirmou o magistrado. “A legislação no Brasil com relação à corrupção
é uma brincadeira e os corruptos têm melhores advogados”, disse. O juiz defende
tabela com pena maior para o maior prejuízo provocado pelos corruptos. Ele
considera absurdo, por exemplo, aplicar pena de dois a dez anos para o crime de
peculato, que é se apropriar de bem ou valor. “A lei precisa definir que até tantos
mil reais, a pena de tanto, e assim por diante. Todos os crimes econômicos
deveriam ter essa escala”, sugeriu. Hoje, segundo o magistrado, se a pessoa
desvia R$ 10 mil e R$ 10 milhões a punição é a mesma. “A legislação favorece o
grande crime”, afirmou.
O juiz federal Odilon de
Oliveira, jurado de morte por traficantes como Fernandinho Beira Mar, está
sempre cercado de agentes da PF. “Não tenho liberdade de frequentar qualquer
ambiente. Fico numa situação de preso no regime semiaberto” Com uma gaveta
cheia de ordens para matá-lo, o juiz Odilon de Oliveira vive sem liberdade por
ser o maior inimigo do tráfico no Brasil. Jurado de morte, em casa, no trabalho
ou na rua, está sempre assim: cercado de agentes. A revista Trip furou sua
escolta para falar da fragilidade da justiça e da vida de quem impõe e vive sob
um rigoroso controle. A primeira gaveta do enorme armário de aço no gabinete do
juiz federal Odilon de Oliveira está cheia. São inquéritos da polícia federal,
gravações telefônicas, cartas, recortes de jornal, bilhetes saídos de presídios
e extensas investigações. Tudo, absolutamente tudo sobre o mesmo tema: planos e
ameaças para matá-lo. É que Odilon fez alguns inimigos durante seus 24 anos
atuando na Justiça Federal. E ninguém fica imune depois de ter desestruturado
dezenas de organizações criminosas, ter condenado mais de 200 traficantes – ele
perdeu a conta – e ter confiscado bilhões de reais do crime organizado. É por
isso que Odilon anda sempre cercado de agentes federais fortemente armados. Já
são 13 anos vivendo em função dessa blindagem. Nesse tempo, ele chegou a ter
oito policiais 24 horas ao seu lado, sem rodízio. Quantos são hoje? Ele
responde, mas depois os próprios agentes pedem para que esse número não seja
divulgado. O fato é que Odilon nunca está desacompanhado. Na formatura de um
dos seus filhos, por exemplo, a lista de convidados da família Oliveira teve
que ser inchada. Dez seguranças foram com o juiz, sendo cinco homens e cinco
mulheres – assim poderiam formar par na hora da valsa. Tanta escolta não é
exagero, a cabeça de Odilon está mesmo a prêmio. Anos atrás, uma investigação
feita em torno de um plano traçado para sua morte revelou que o pistoleiro
embolsaria R$ 1,5 milhão. Seus inimigos são grandes. Uma das pastas da tal
gaveta cheia de seu gabinete tem uma lista com 61 nomes. Todos grandes
traficantes internacionais que poderiam tramar contra sua vida. Entre eles está
lá: "Luiz Fernando da Costa (Fernandinho Beira-Mar)". Justifica-se:
Odilon foi juiz corregedor do presídio federal de segurança máxima de Campo
Grande de 2006 a 2009. Nesse tempo mandou Beira-Mar algumas vezes para o RDD, o
Regime Disciplinar Diferenciado – o tal castigo. E está prestes a sentenciar o
traficante num processo por lavagem de R$ 11 milhões.
Além disso, o juiz foi
responsável por descobrir o plano de Beira-Mar para sequestrar um dos filhos do
ex- presidente Lula, em 2008. A trama começou a ruir quando Odilon interrogava
o megatraficante colombiano Juan Carlos Abadía, na época preso em Campo Grande.
Interessado em conseguir alguns privilégios com a Justiça, Abadía vazou o plano
durante o interrogatório – e Odilon iniciou o processo para acabar com o
projeto de Beira-Mar. A indisposição com o alto escalão do Comando Vermelho
estava feita. E não seria diferente com o PCC. Odilon condenou o traficante
Cabecinha, responsável por enviar cocaína direto da Bolívia para a organização.
Odilon recebeu a reportagem da Trip em seu gabinete na Justiça Federal de Mato
Grosso do Sul e também em sua casa, onde vive com a mulher e dois dos três
filhos. Uma residência espaçosa, com quarto exclusivo para os agentes federais,
bem diferente da casa simples onde ele cresceu na roça no interior do Estado,
depois de ter saído ainda criança com a família toda de Exu, em Pernambuco, sua
cidade natal. Na conversa ele fala sobre corrupção, legalização de drogas,
decepção com a justiça brasileira, controle das fronteiras e privação da
própria liberdade.
O senhor pode ser considerado o maior inimigo dos traficantes no
Brasil?
Bom, os jornais, especialmente
do Paraguai, anunciavam isso. "O inimigo número 1 do tráfico", isso
já foi manchete de vários jornais de lá. E do Brasil também. Na realidade, eu
já condenei um montão de traficantes e contrabandistas. Sempre fui bastante
rigoroso. De modo que minha imagem já é rotulada pelo mundo do crime como sendo
o lado adverso, o inimigo. Quer dizer, dentro da criminalidade organizada eu já
sou um cara mal querido, mesmo por aqueles que eu nunca sentenciei.
Já fez um levantamento do prejuízo que causou a esse crime organizado?
Tenho uma estimativa de 2005
pra cá, quando esta vara foi especializada em lavagem de dinheiro vindo do
tráfico, sonegação e remessas pro exterior – que também tem relação com o
tráfico. De lá pra cá nós sequestramos do crime por volta de 85 fazendas, 370
imóveis, 18 aviões, 600 veículos e 14 mil cabeças de gado.
E quanto isso significa em dinheiro?
Foi feita uma estimativa de que
isso dá uns R$ 2 bilhões. Pra você ter uma ideia, eu sentenciei um traficante
recentemente e confisquei dele um conjunto residencial fechado inteiro, com
nove sobrados, um avião e mais três mansões. Isso é um baque danado pra pessoa.
Surrupia mesmo o patrimônio. Aí é que a pessoa chia, né? E chia bonito.
Bom, isso explica o porquê de tantas ameaças de morte. Qual foi o plano
mais recente descoberto?
Foi agora no fim de 2010, mas
eu não gostaria de dar nenhuma informação porque está em investigação. A fase
mais intensa foi quando atuei em Ponta Porã [entre 2004 e 2005], na divisa com
o Paraguai. Acho que foi meu melhor momento como juiz federal. Não tinha uma
semana em que eu não recebia uma ameaça de morte. Fiquei viciado naquela
adrenalina. Foi lá que eu passei a viver no fórum depois de ter sofrido dois
atentados. Eu estendia meu colchonete no chão e dormia ali mesmo. E em frente
ao meu gabinete dormiam oito agentes da polícia federal.
É mais perigoso para um juiz investigar a corrupção política do que o
tráfico?
A justiça penal no Brasil, no
meu entender, virou ficção. Tem uma justiça para aquela pessoa que é cheia de
pendor político, social e econômico. Nitidamente separada da outra justiça.
Olhe: 23% do trabalho da polícia federal é dedicado ao combate à corrupção. E
15% é dedicado ao combate às drogas. Em 2010, todos os presos por tráfico no
Brasil somavam 105.500 pessoas. Como a atuação da PF é maior para corrupção,
você imagina que deve ter um número bem grande de presos também. Mas são 794
detidos. E desses 794 você vai achar só aquele servidor que pegou uma fiança de
R$ 500 e embolsou. Isso responde a sua pergunta? E tem outra coisa que acho
muito grave também. O sistema penal já é feito para beneficiar os grandes, alguns
exemplos provam isso.
Que exemplos?
Na área do tráfico a legislação
prevê de 5 a 15 anos de prisão, independente da quantidade de droga. Se um
sujeito trafica 10 kg, ele é primário, de bons antecedentes, vai pegar cinco
anos. Se ele trafica 10 t, nas mesmas condições do outro, ele vai pegar no
máximo uns cinco anos e meio. Ou seja, a legislação incentiva a prática do
grande crime. Isso vale para crimes financeiros, como remessas de dinheiro para
o exterior. Se a pessoa mandar para o exterior R$ 10 mil ou R$ 10 milhões a
pena vai ser quase a mesma. E quem trafica grandes remessas para o exterior?
Claro que é quem tem muito dinheiro. Então a legislação brasileira é uma grande
hipocrisia na esfera penal, ela é frouxa. O grande paraíso fiscal está aqui no
Brasil, porque não dá nada mesmo.
E como o senhor se sente com relação a isso?
É uma decepção. A grande
maioria dos juízes está totalmente desgostosa. Acha que a justiça penal virou
efetivamente uma justiça que atende prontamente os ricos, para beneficiá-los. E
atende prontamente também os pobres, mas para deixá-los na cadeia. Eu que já
tenho 30 anos de magistratura, sendo 24 na Justiça Federal, chego no fim da
minha vida funcional com uma grande decepção. Tremendamente decepcionado.
Há o que fazer pra virar esse jogo?
Hoje existe um envolvimento
muito grande, eu diria promíscuo, entre crime organizado e administração
pública. Em todos os poderes existe. Se há o que fazer? Para consertar eu
acredito numa instituição chamada juventude. Não essa que está aí agora, mas as
novas, que ainda virão. Aí depende da educação, tem que partir de uma
conscientização de que a sociedade tem força pra exigir dos governantes, exigir
leis mais pesadas. Caso contrário não muda nada.
O senhor declarou ser contra a legalização das drogas. Por quê?
O problema maior não é a parte
penal, da punição. O problema é de saúde pública. Com a liberação, o comércio
de drogas será bem maior. Aí também aumenta o consumo.
Mas os governos gastam valores absurdos no combate. Em caso de legalização
essa verba não poderia ser revertida para a saúde, por exemplo?
Se o mundo fizesse isso seria
um negócio muito malfeito. A exemplo do Brasil, o mundo não tem estrutura para
curar seus viciados. Se o Brasil quiser internar hoje 2% dos seus viciados não
terá leitos suficiente. Acho que o grande negócio é o mundo se voltar para o
combate às drogas, lá na origem. Normalmente o combate é feito no país de
consumo, quando você tem que combater na fonte. Quem é que encharca o mundo de
drogas, principalmente de cocaína, com a conivência do Brasil? É a Colômbia. E
quem combate a cocaína lá? Só os Estados Unidos.
O senhor considera hipocrisia descriminalizar o usuário e condenar a
produção de droga?
É uma grande hipocrisia
efetivamente. É a lei da oferta e da procura. A legislação brasileira com
relação a isso é toda uma grande hipocrisia. Ela confunde o usuário ocasional
com o viciado, mistura os dois. Ela aplica prestação de serviços à comunidade
por cinco meses nos dois casos. Essa medida é de bom tamanho para o viciado,
desde que com tratamento médico. Mas aquele usuário ocasional, que usa a droga
para ir numa festa, tem que receber medidas mais duras. Ele conscientemente
sustenta o tráfico.
O sr. já pensou em se candidatar a um cargo político?
Já fui convidado por diversos
partidos para qualquer cargo que eu quisesse, menos o de presidente. Mas eu
penso que teria que sofrer uma adaptação bem grande. O conceito que se tem de
honestidade, de cumprimento de dever, é bem diferente no mundo político. Não
quero dizer que todos os políticos são sebosos, safados, mas uma grande parte
é. Então, se eu fosse algum dia político, só seria por um mandato. Porque se eu
não entro no esquema não sou reeleito.
Recentemente os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) decidiram
não aplicar a lei da Ficha Limpa para a última eleição. O que o senhor achou?
Acho bem discutível. Todos eles
têm razão, tanto quem votou contra como quem votou a favor. As duas
interpretações têm fundamentos. Pela minha formação, eu votaria pela aplicação
da Ficha Limpa. Eu consideraria como peso a sociedade. A angústia da sociedade.
Este ano houve um corte na verba da PF, o que prejudicaria o
policiamento das fronteiras. Como o senhor vê o controle de fronteiras do
Brasil?
É péssimo. Temos cerca de
16.000 km de fronteira seca. Com passagem a quem vai e a quem vem de maneira
descontrolada. Você não vê policiais nessa fronteira. Vamos pegar como exemplo
o Estado de Mato Grosso do Sul. Temos uma delegacia da polícia federal lá em
Corumbá. Aí você vai andar uma eternidade pela fronteira até encontrar outra lá
em Ponta Porã. Depois só em Naviraí. Matematicamente se prova que a fronteira
está despolicializada.
Isso no Mato Grosso do Sul, uma das portas do tráfico.
A fronteira mais complexa com relação
ao tráfico de drogas e armas é a desse Estado. Não tem outra. O MS faz
fronteira com dois países que são peças-chave nesse comércio: o Paraguai, que é
o segundo produtor mundial de maconha e é um imenso corredor da cocaína; e a
Bolívia, que é o terceiro produtor mundial de cocaína.
Com tantas ameaças, o senhor se sente prisioneiro?
Na realidade eu me sinto,
porque ainda que ande com segurança não tenho aquela liberdade de frequentar
qualquer ambiente. Eu fico mais em casa. Digamos que fico numa situação assim
de preso no regime semi-aberto. Como é que eu vou à casa de um amigo com um
monte de gente armada? As pessoas acham que é glamoroso, é status, mas na verdade
é sempre um constrangimento.
Depois de tanto tempo de carreira, aos 62 anos, quando o senhor olha
para trás acredita que valeu a pena ter perdido a liberdade?
Se eu contabilizar benefícios
pessoais, não vale nada. O prejuízo foi imenso, incalculável. Só que juiz
nenhum pode querer ser juiz pensando em benefícios pessoais. Ele já tem que entrar
assumindo o risco de ter que passar pela privação. Mas, com relação ao
benefício para a sociedade, compensou grandemente. Não me arrependo de nada e
faria tudo de novo. Só que faria de maneira mais rigorosa ainda.
Entrevista a Caio Ferretti, de
Campo Grande. Fotos: Lucas Lima - da revista TRIP, com informações complementares
e fotos do Correio do Estado e do Bahia
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