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Por trás da última cortina de ferro


Por Brigitte streginsky, de Pyongyang - publicado em: 10/08/2012 – portal da revista STATUS
Status visitou a Coreia do Norte, o mais isolado país do planeta, onde o culto a seus líderes, o poder das forças armadas e o controle total sobre a população civil atingem níveis inimagináveis
Os soldados norte-coreanos somam 1,2 milhão de homens na ativa
e outros oito milhões na reserva, o que faz do país
o mais militarizado do planeta
UM PAÍS SOMBRIO E ATRASADO, uma capital cinza e uma populacão triste e miserável. Foi com essa imagem que decidi embarcar em uma viagem de uma semana pela República Democrática Popular da Coreia, como parte de um grupo de turistas. Queria conferir com meus próprios olhos se o que a maioria das pessoas no Ocidente pensa a respeito dos norte-coreanos era verdade. Todos no nosso grupo, pessoas com as mais variadas profissões, compartilham a curiosidade de ver o que acontece por trás da cortina de ferro do regime comunista mais fechado do planeta. Logo percebemos que não éramos os únicos: durante nosso tour pelo país, encontramos visitantes de todas as partes do mundo. Apenas recentemente esse país recluso começou a abrir as portas para um turismo organizado e rigidamente controlado, em um esforço para atrair o tão necessário dólar americano.
Aterrissamos na capital Pyongyang em meados de abril durante as celebrações do centenário de nascimento de Kim Il-sung (1912-1994), fundador da Coreia do Norte e avô do atual líder Kim Jong-un. Ao mesmo tempo em que pôsteres de um sorridente Kim Il-sung nos saudavam no aeroporto e militares se encarregavam de recolher nossos celulares – os quais recuperaríamos apenas no momento de nossa partida – o país anunciava a revisão de sua Constituição, com um novo texto ostentando sem meias palavras a capacidade militar do país. Destaque para o termo “estado nuclear”, presente no preâmbulo da nova Carta: “O presidente da Comissão de Defesa Nacional, Kim Jong-il, transformou a nossa pátria em um país invencível com forte ideologia política, um estado com poder nuclear e uma invencível potência militar, preparando o terreno para a construção de uma nação forte e próspera.”
As estátuas de bronze de 20 metros de altura de Kim Il-Sung
 e Kim Jong-Il, inauguradas em abril, revelam o culto extremo
 aos líderes da nação, traço marcante do caráter norte-coreano,
assim como a adulação quase histérica da população a seus militares
A nova Constituição é mais um grau de tensão nas relações entre a Coreia do Norte, seus vizinhos do Sul e o Ocidente. Desde a morte de Kim Jong-il (1942-2011), em dezembro, o diálogo vem se deteriorando. O programa de apoio internacional para segurança alimentar do país, em troca do congelamento dos testes nucleares, assinado em fevereiro, acabou suspenso quando a Coreia do Norte anunciou abruptamente o lançamento de um foguete neste mesmo mês de abril. O lançamento foi considerado pelo governo dos Estados Unidos como um ato de quebra de confiança entre as partes.
Além disso, no começo de junho a agência de inteligência sul-coreana divulgou imagens de satélite que revelam o aumento de atividades na planta nuclear norte-coreana de Musudan-ri, no nordeste do país, alimentando as especulações de novos testes nucleares, o que violaria duas resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Os EUA advertiram que, se realizados, os testes demandariam “resposta imediata”. Mas os norte-americanos evitam um conflito armado na península coreana a todo custo. Sabem que a Coreia do Norte pode produzir até nove ogivas nucleares. Seu aparato bélico inclui também 3,5 mil tanques, 1,5 mil aviões e 420 navios. O país conta ainda com o terceiro maior estoque de armas químicas do planeta e, no campo da inteligência cibernética, estaria atrás apenas dos EUA e da Rússia. Gasta com o sistema de defesa nacional cerca de um quarto de todo seu Produto Interno Bruto, estimado em US$ 40 bilhões (2011).
No país comunista mais militarizado e isolado do mundo todas as visitas são rigorosamente monitoradas e a comunicação com o mundo exterior é mantida sob estreita vigilância. Para garantir o procedimento, foram designados três acompanhantes para o nosso grupo. A tarefa deles era servir como guias, mas também manter um olhar vigilante sobre cada passo que dávamos. Fizeram nosso check-in no hotel, mostraram-nos os banheiros, sempre se sentavam em mesas próximas à entrada de restaurantes e nos faziam companhia no bar do hotel até que a última pessoa fosse dormir. Sempre com educação e elegância.
Sabíamos que estrangeiros estavam proibidos de ter qualquer contato com a população local. Também tínhamos ouvido falar de incidentes em que residentes estrangeiros que tinham sido feridos em áreas lotadas, ao cair da escada ou escorregar na rua, por exemplo, acabaram por receber cuidados médicos tardios, pois os norte-coreanos têm receio de se aproximar das vítimas. Ainda assim, não esperávamos uma vigilância tão feroz. Afinal, o idioma em si já era um obstáculo. Desta forma, nosso contato com a população local durante toda a viagem seria restrito principalmente aos três guias.
Entretanto, conforme percorríamos os 24 quilômetros do aeroporto até Pyongyang, fui forçada a reavaliar tudo o que pensava saber sobre a Coreia do Norte. Ao longo das amplas avenidas pontuadas por imponentes edifícios públicos e gramados bem cuidados, em todos os lugares as pessoas nos saudavam com sorrisos. Não parecia ser o país no qual um quarto da população passa fome, de acordo com o Programa Alimentar Mundial (PAM), das Nações Unidas. Longe de terem expressões sombrias, eles pareciam genuinamente felizes. Minha primeira impressão foi a de me sentir em uma terra de faz de conta. Vi pessoas pescando nas águas límpidas do rio Taedong, que corta a capital, crianças brincando perto de fontes majestosas, mulheres em trajes coloridos vendendo flores, estudantes tocando música nas ruas. Tudo evidenciava um clima de alegria para as grandiosas festividades em comemoração ao centenário do “pai da nação”.
Kim jong-un, 29 anos e líder supremo do país desde dezembro do ano passado,
desafia o ocidente ao manter seu programa nuclear
Duas estátuas de bronze gigantescas de 20 metros de altura de Kim Il-sung – o presidente eterno – e Kim Jong-il – o secretário eterno – haviam sido erguidas para a ocasião. À medida que subíamos os degraus para os monumentos, multidões de norte-coreanos depositavam flores aos pés das estátuas com reverência. Deveríamos fazer o mesmo e fomos levados a uma floricultura onde comprei um buquê de kimilsúngias e kimjongílias. Sim, o culto à personalidade na Coreia do Norte chega ao ponto de espécies híbridas de flores serem criadas especialmente para homenagear os líderes.
O ponto alto de nossa visita prometia ser a parada militar na Praça Kim Il-sung, com capacidade para acomodar 100 mil soldados. Para minha decepção, esse espetáculo estava reservado exclusivamente a Kim Jong-un e seus generais. Nós, os turistas, deveríamos assistir a uma versão mais simples de uma parada militar nas ruas da capital. Homens e mulheres usavam suas melhores roupas e, à medida que as colunas de veículos militares desfilavam, as pessoas aplaudiam e gritavam em um frenesi incontrolável até que o último caminhão tivesse passado – quase uma hora depois. Essa parada me deu certa noção da vastidão do exército norte-coreano que, com seu contingente de 1,2 milhão de soldados e uma força-reserva com oito milhões em pessoal, faz do país o mais militarizado do mundo. Ficou clara a adulação da população civil aos militares, vistos como protetores da paz, integridade e segurança do país e força motriz da “revolução”.
Turistas visitam a cabana em Mangyongdae, onde nasceu o “pai da nação”
 Kim il Sung, avenida deserta em pyongyang e estação de metrô
na capital, que faria parte de um complexo de instalações militares
subterrâneas construídas para abrigar a população em caso de guerra
Como a Coreia do Norte vive sob alerta militar constante, exercícios “de guerra” acontecem regularmente na cidade. Ao descer os túneis de 100 metros de profundidade pelas escadas rolantes do metrô, ouvi alto-falantes estrilando canções revolucionárias. Corre a informação de que uma extensa rede de túneis subterrâneos e instalações militares se espalha por baixo da cidade, incluindo bunkers que poderiam abrigar os cidadãos em caso de conflito armado. Em dias normais o metrô oferece transporte regular aos estimados dois milhões de habitantes da capital. Os vagões do metrô são verdadeiras relíquias dos anos 1950, assim como os ônibus que circulam nas ruas. O transporte público, por sinal, é a principal alternativa de mobilidade urbana em Pyongyang, visto que poucos carros trafegam pelas ruas e avenidas da capital. A maioria desses é formada por veículos designados para uso oficial. Mesmo bicicletas são raras e, na prática, a maioria das pessoas circula a pé.
Na Coreia do Norte, é claro, o acesso à Internet é proibido. Os rádios e tevês captam estações estatais pré-sintonizadas e devem ser registrados junto às autoridades. A maior parte das transmissões de notícias é propaganda política e obedece estritamente às orientações determinadas no livro de Kim Jong-il, “Orientação para Jornalistas”, no qual ele exorta os profissionais da imprensa a “terem o presidente em alta estima, adorá-lo e exaltá-lo”. Nosso guia, educado na Suíça assim como o atual líder Kim Jong-un, nos conta que os “grandes” Kim Il-sung e Kim Jong-il já escreveram milhares de livros em todas as áreas – da agricultura à produção cinematográfica, comida e moda. Sou forçada a reprimir um riso quase involuntário.
A adulação aos líderes nacionais parece não ter limites. Um dos lugares mais sagrados para os norte-coreanos é o local do nascimento de Kim Il- sung, no vilarejo de Mangyongdae, perto de Pyongyang. Essa humilde cabana de adobe com telhado de palha está instalada em meio a jardins, e uma multidão de guardas e supervisores assegura que as pessoas mantenham o devido respeito ao local. Inadvertidamente, um integrante do nosso grupo entrou em um dos cômodos e, ato contínuo, nosso guia foi imediatamente chamado à presença do supervisor, que fez uma sucessão de telefonemas a diversas repartições na capital. Fomos informados de que nosso tour poderia ser cancelado devido ao incidente. O desfecho traumático acabou sendo evitado graças a profusos pedidos de desculpas do transgressor, o que me deu a percepção incisiva do culto à personalidade que cerca Kim Il-sung e sua dinastia e a ideia do que acontece por trás da fachada de jardins caprichosamente tratados e pessoas imaculadamente vestidas e alegres. Qualquer transgressão pode levar à punição severa e imediata.
Agricultura primitiva
As ruas que saem da capital do país são incrivelmente largas e totalmente desertas. O transporte é rigidamente controlado pelo Estado e permissões governamentais são necessárias para todas as viagens intermunicipais. Na maioria das vezes éramos as únicas pessoas viajando pelas autoestradas com dez faixas de largura. Ao longo dos trajetos, pude observar como cada pedaço de terra na Coreia do Norte é usado para a agricultura, já que o país tem graves problemas para alimentar sua população, estimada em 24 milhões de pessoas. Também pude constatar a parca tecnologia aplicada na produção agrícola. Em toda a viagem avistei apenas dois tratores. Havia muitas pessoas trabalhando a terra com bois e nosso guia nos contou que os soldados também trabalham como fazendeiros, cuidando dos campos ou construindo barragens.
Todos os braços são necessários em um país notoriamente conhecido por ainda utilizar técnicas agrícolas primitivas. O petróleo continua sendo o calcanhar de aquiles da Coreia do Norte. Como todo o combustível utilizado no país é importado – e sua moeda é fraca para competir no mercado internacional de energia – a Coreia do Norte tem cada vez mais dificuldade para operar seu maquinário e indústrias. É por isso que a empreitada de atrair turistas estrangeiros vem sendo tratada como um meio para resolver o problema da falta de dólares no país, mas a estratégia cobra um preço alto: o medo do governo de perder o controle sobre sua população.
De acordo com o Programa Alimentar Mundial, a Coreia do Norte tem seis milhões de pessoas necessitando de assistência alimentar. Organizações de ajuda internacional relataram um aumento de 50% a 100% no número de crianças mal nutridas (entre abril de 2010 e abril de 2011) e a situação está fadada a piorar, já que todas as doações de alimentos foram suspensas até que o país aceite voltar a negociar para seu progressivo desarmamento nuclear. 
Mas a imagem de uma nação faminta parecia estar em um mundo distante ao descermos o rio Taedong em um barco-restaurante na véspera da nossa partida. Nossos olhos se deleitavam com a visão da praça Kim Il-sung espetacularmente iluminada à noite enquanto degustávamos um banquete à base de carne desfiada, ovos, diversos tipos de bolinhos, saladas e, claro, kimchi – o típico repolho em conserva com tempero picante. Os pratos são todos servidos e comidos simultaneamente na Coreia do Norte, com exceção do arroz, que é comido separadamente, de preferência ao final da refeição. Os coreanos também adoram grelhados – embora esse seja um luxo reservado apenas aos poucos que podem pagar por carne ou peixe frescos.
Como em todas as nossas saídas para jantar fora, nossos três guias ficaram devidamente sentados e mais vigilantes do que nunca, perto da porta. Só se juntaram a nós para comemorar o fim da viagem. Estávamos no restaurante giratório (sim, giratório, oferecendo 360º de paisagem) no 47o andar do nosso hotel de Pyongyang. Todos nós – turistas e guias – compartilhávamos um clima de alegria e comemoração, abrindo algumas garrafas de vinho norte-coreano que, pude notar, tem gosto de xerez. De costume, os norte-coreanos bebem cerveja – quando podem pagar ou ter acesso a ela, pois a bebida normalmente é distribuída apenas por meio de cupons e em ocasiões especiais. Para bebê-la em casamentos e aniversários de morte, por exemplo, é necessária uma autorização de uma repartição local.
Uma visita à Coreia do Norte exige razão e sensibilidade para equilibrar os poucos fatos conhecidos, observações em primeira mão e a propaganda oficial. Ainda que algumas informações vazem por residentes estrangeiros e organizações de ajuda ativas no país, a verdade é que ninguém sabe realmente o que se passa por trás da cortina de ferro. Afinal, vemos somente o que nos é permitido ver. Vamos aonde nos é permitido ir. Ao final da viagem, a misteriosa realidade do cotidiano do país permanecia indecifrável. Até porque nenhum estrangeiro obteve permissão para entrar em qualquer lugar que não tenha sido previamente aprovado pelas autoridades. Talvez a Coreia do Norte continue esquiva por um longo tempo. Esses são meus últimos pensamentos enquanto embarco no velho Tupolev 154 russo operado pela Air Koryo, de volta a Pequim, a única rota de saída da mais isolada nação do planeta. 
(Clique nas fotos para vê-las em tamanho original)