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Poucas & Boas nº 110: Onde está a mudança?

O pirata de Silopoileh II - Conto

O seu pai não dava muita importância ao nascimento do filho. Tinha mais com o que se preocupar. Não tinha culpa se, por um momento em domínio do gozo, fecundara aquela maluca. Não tinha juízo mesmo, agora ela era pior. Doidinha só a gota! Só era chamar. Tava sempre pronta. E foi assim que aquele desmiolado veio ao mundo. Criado ao léu, sem limites, virou um Zé Gomes da vida. Logo cedo vieram as queixas dos vizinhos e as brigas intermináveis. Ora uma briga com um colega, ora um gesto obsceno com uma senhora, ora um roubo num quintal qualquer. Vildor era um acúmulo de problemas. Os pais? Nada! É esse povinho daqui. Não tem o que fazer. Isso é inveja. Não podem ver ninguém crescer... Vildor sempre tinha razão. Toda mãe é santa. Todo pai tem seu caminho de razão.
Assim foi crescendo o garoto. Um dia seu pai ganhou na loteria. Acertou as cinco dezenas da Quina. Mais de trezentos mil reais. Em Silopoileh todos tiveram problemas com Vildor. Mas agora Vildor estava com a mão numa grana razoável. Não demorou muito muitos amigos aparecerem. Sim. O pai de Vildor melhorou a casa, comprou um caminhão e saiu pelo mundo com o filho. Noitadas, viagens sem nexo. O dinheiro foi minguando.
Um dia, Vildor atirou uma pedra e errou o alvo. Arranhou a geladeira da vizinha. Absurdo! Um rapaz já crescido atirando pedra! Não se dá ao respeito, Vildor? É claro que a reação dele foi a já esperada. Mandou a vizinha para certo lugar e ainda mostrou a ela todos os seus documentos em plena rua. O pai de Vildor, após receber mais essa queixa, reagiu. Disse o diabo à pobre senhora. Mais, pegou a geladeira e atirou-a no meio da rua. Em seguida tocou fogo. Foi até uma loja, comprou uma geladeira novinha e mandou entregar à queixosa. Enquanto isso, gritava para todos ouvirem: “Tenho dinheiro! Meu filho pode fazer o que quiser!”
Mas nem todo rio manda suas águas para o mar ou o perfume não vive o tempo todo do seu cheiro. O dinheiro acabou. Vildor, já vinte anos, foi para longe. São Paulo era o limite, mesmo sem gostar muito do trabalho. Um dia matou para roubar. Ninguém viu. Respirou por um tempo. Depois a maconha, a cocaína, o craque, as armas clandestinas, uma segunda morte. Já era doutorado em violência e perversidade. Mas nunca lhe faltou o carro novo, a vida regada a uísque e mulheres. A polícia jamais o pegaria.
Sei que veio o desajuste. Os bandidos passaram a ver nele o perigo. Cortar o mal pela raiz. Era hora de limitar Vildor. Não demorou muito e ele já era perseguido por vários grupos das mais inúmeras favelas de São Paulo. Teve que fugir e veio parar novamente em Silopoileh. Passou a infernizar a vida do povo da cidade. Precisava alimentar seu vício e seu ódio. O pai, já bem pobre, era taxista. Seu orgulho impedia de ver o filho como um problema. A mãe fumava e bebia pelos bares a se orgulhar da valentia do filho. Honrado, digno, valente! Era o soberano Vildor o orgulho da família. O resto era coisa de invejosos. Qual bandido o quê!
Foi numa noite de sábado em Silopoileh que um homem se aproximou e começou a discutir com Vildor por causa do carro mal estacionado. Não precisava dizer muito para Vildor sacar a arma. Só que já era tarde. Uma automática de 9 milímetros fez o povo se abaixar. O desconhecido foi preciso. Vildor sucumbiu na sua própria história. Jaz perpetuamente sobre sua arrogância e a cidade respirou aliviada, amando aquele pirata, aquele estranho, aquele anjo de justiça. Sim! Pode ser até um bandido. Provavelmente o é, mas anjo sim.
Enquanto isso, tomada pela cirrose, a mãe resmunga em cada canto: Puta que pariu pra essa cidade. Puta que pariu pra esse povo. Mataram meu filho. Excomungados! Mataram meu filho! E o pai, catando detritos no fundo de um restaurante, gritava dissonante: Deixa estar que Vildor vai voltar. Deixa estar, raça miserável!